O
Tribunal Superior Eleitoral iniciou no dia 25 de junho o julgamento sobre
eventual abuso do poder religioso nas eleições. O Ministro Relator Edson
Fachin, em que pese tenha afastado no caso concreto o abuso, propôs a fixação
de tese no sentido de criar um tipo de abuso específico consistente no “abuso
de poder religioso”. O caso analisado é o Recurso Especial nº000008285, oriundo
de Luziânia-GO. As questões que surgem são: Pode o Tribunal Superior Eleitoral
criar uma nova figura de abuso? Há na espécie interferência do Poder Judiciário
nas funções do Poder Legislativo? Por fim, há necessidade de criação de um tipo
autônomo para apurar eventual abuso por parte de “autoridades religiosos” em favor
de candidato?
A
Declaração Universal dos Direitos Humanos garante, em seu artigo 18, que: “Todo ser
humano tem direito a liberdade de pensamento, consciência e religião; esse
direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de
manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto em
público ou em particular”.
O artigo
5º, VI, Constituição da República: "é inviolável a liberdade de consciência e de
crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida,
na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias".
Qual o
limite da autonomia religiosa no processo eleitoral? O Artigo 19, I, da
Constituição da República estabelece a cláusula geral da separação
Estado-igreja (Estado Laico), ao dispor que é vedado à União, aos estados, ao
Distrito Federal e aos municípios “estabelecer cultos religiosos ou igrejas,
subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus
representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei,
a colaboração de interesse público”.
A
liberdade religiosa não constitui direito absoluto. Não há direito absoluto. O
Ministro Henrique Neves destacou, com acerto, que a liberdade de pregar a
religião, essencialmente relacionada com a manifestação da fé e da crença, não
pode ser invocada como escudo para a prática de atos vedados pela legislação.
(TSE, RO 265308, j. 7/3/2017, DJe 05/04/2017, p. 2).
Deve
haver vedação a participação das religiões no processo político, mas quais são
os limites segundo o Tribunal Superior Eleitoral? Nosso ordenamento jurídico
não veda a criação de partidos políticos declaradamente confessionais e
tampouco a candidatura de atores políticos ligados diretamente a instituições
religiosas, muito embora haja limitação quanto à fonte de financiamento das
campanhas e a proibição de propaganda nos templos de qualquer culto.
A
Eminente Ministra Rosa Weber pontou que é “imperioso perscrutar em que extensão
cidadãos são compelidos a apoiar determinadas candidaturas a partir da atuação
de líderes religiosos, que, por vezes, atrelam sua indicação, fruto de escolha
política pessoal, à vontade soberana de Deus, com reflexo direto na liberdade
dos fiéis e enfraquecimento consequente do processo democrático” (RO nº 537003,
Rel. Min. Rosa Weber, j. 22/8/2018, DJe 27/09/2018).
Não
obstante inexistir expressamente no ordenamento jurídico a figura do abuso do
poder religioso, seria ele prática punível, tal e qual os abusos de poder
econômico e/ou poder político? Muitos dos casos que chegam aos Tribunais não
utilizam o termo "abuso de poder religioso", mas as situações fáticas
e os argumentos que embasam as decisões indicam o abuso de poder e o caráter
religioso como um subtipo do ilícito.
Renato
Ribeiro de Almeida (2016:479) conceitua o abuso de poder religioso como a
“prática ilícita (...) configurada pelo aproveitamento de uma estrutura
religiosa para a promoção política de um candidato, com fins de obter votos e
ganhar eleições”.
De outra
parte, o Ministro Henrique Neves, por ocasião do julgamento do RO nº 265308,
citado acima, posicionou-se pela inexistência do abuso de poder religioso de
forma autônoma, haja vista a ausência de previsão da figura na Constituição da
República e na legislação eleitoral esparsa. O Ministro Luiz Fux, no mesmo
julgamento, resumiu o entendimento daquela corte ao afirmar: “não existe abuso
de poder religioso, seria o abuso de poder político via religião” (TSE, RO
265308, relator Ministro Henrique Neves, j. 7/3/2017, DJe 05/04/2017, p.42).
Os
tribunais pátrios têm proferido decisões fundamentadas em “abuso do poder
religioso”, porém não de forma autônoma, mas sim amparado, ora no abuso do
poder econômico, ora no abuso do uso dos meios de comunicação social, a pretexto
de não existir, no ordenamento pátrio, previsão expressa de punição para o ato
específico que configure, de forma autônoma, o referido instituto.
No mesmo
sentido do voto da Ministra Rosa Weber proferido no RO nº 537003, no
campo religioso, não há como desconhecer a capacidade dos líderes religiosos de
influenciarem nas condutas e escolhas dos fiéis nos mais diversos segmentos da
rica realidade da vida, dentre os quais se inclui a seara política. Sem dúvida
os líderes espirituais inspiram confiança em seus seguidores, e sua atuação tem
potencial para influenciar no campo político a escolha de candidatos a mandatos
eletivos, induzindo o voto não somente pela consciência pública, mas,
primordialmente, pelo temor reverencial (TSE, RO nº 537003, Relatora Ministra
Rosa Weber, j. 22/8/2018, DJe 27/09/2018, p.25).
Todavia,
em resposta as pergunta iniciais desse breve texto, entendo ser um flagrante
ativismo judicial a criação autônoma da figura do abuso do poder religioso,
mesmo porque despicienda, na medida em que pode ser subsumida nas figuras de
abuso de poder de autoridade ou abuso dos meios de comunicação, já previstos
expressamente no artigo 22, caput, da Lei Complementar 64/90.
Marcelo Aith -
advogado especialista em Direito Público e Direito Penal e professor da
Escola Paulista de Direito
Nenhum comentário:
Postar um comentário