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terça-feira, 30 de março de 2021

Chegou a hora: a Telemedicina virou Medicina

A Telemedicina, regulamentada no Brasil forçosamente para atender a demanda emergencial provocada pela pandemia da Covid-19, continua a provocar discussões relevantes por entidades médicas brasileiras. Indiscutível que a Telemedicina (em todas as suas modalidades) veio para ficar e será permanente. Apesar de estar em discussão há duas décadas, essa metodologia precisa ser aperfeiçoada para garantir a segurança na relação médico-paciente. Neste contexto, em recente debate na Câmara dos Deputados, em Brasília, a Associação Médica Brasileira e a Associação Paulista de Medicina discordaram do entendimento do Conselho Federal de Medicina, o qual tem competência legal para regulamentar o tema, no sentido de que a primeira consulta deva ser presencial, tal como previsto na então revogada Resolução CFM 2227/2018. A questão é: ela é sempre necessária de fato?


Importante destacar que, no recente evento realizado pela Frente Parlamentar da Telessaúde, o primeiro vice-presidente do Conselho Federal de Medicina, Donizetti Giamberardino, informou que o CFM está revisando e publicará em breve uma nova resolução regulamentando a Telemedicina, em todas as suas modalidades, estabelecendo regras tanto para o Sistema Único de Saúde (SUS) quanto para consultórios privados. Ele esclareceu também que o conselho realizou consulta pública sobre o tema e recebeu mais de 2 (duas) mil contribuições.

 A permissão para a teleconsulta no Brasil foi acelerada em razão da emergência em saúde pública, reconhecida pela Portaria 188/20 e pela Lei 13.979/20. O isolamento social, necessário para controlar a rápida disseminação do vírus trouxe a urgência de medidas a serem adotadas pelas autoridades sanitárias, uma delas foi a de se permitir a consulta a distância, uma das modalidades da Telemedicina. A mais complexa do ponto de vista ético e legal, considerando que extrai da relação médico e paciente um dos seus elementos centrais: o exame clínico presencial. 

Hoje, a prática da Telemedicina está embasada pela Lei 13.989/2020, resultante do Projeto de Lei 696/20. Antes dessa lei, foram publicadas a Portaria 467/20 pelo Ministério da Saúde. A indicação para que a sociedade adotasse o isolamento social como comportamento necessário para evitar a contaminação, por si já seria um autorizador para a prática da teleconsulta, inclusive considerando dispositivos do próprio Código de Ética Médica, no sentido de que o médico não pode abandonar seus pacientes e de que está autorizado ao uso da Telemedicina em caráter de urgência. 

Caberia investigar as experiências de outros países, a começar pelos próprios registros constantes no Global Observatory for ehealth criado pela Organização Mundial da Saúde (World Health Organization), em que se identificam situações de clara ampliação do acesso à saúde para os pacientes e estrondosa economia quer para o Estado quer para os indivíduos, utilizando-se também a telemedicina. Considera-se ademais ser uso de tecnologias de informação e comunicação (TIC) para a saúde como uma das áreas de crescimento mais rápido na saúde hoje.

Em Relatório emitido pela OMS, já há 11 anos, intitulado Opportunities and developments in Member States através do uso da Telemedicina, indicam-se quais são os principais objetivos dessa metodologia: fornecer suporte clínico; superar barreiras geográficas, conectando usuários que não estão na mesma localização física; possibilitar o uso de vários tipos de TIC; melhorar os resultados de saúde. 

Alguns exemplos no mundo ratificam a importância do tema: na Austrália, realizam-se teleconsultas desde 2014 (sem restrições ); na Albânia, desde 2013, para reduzir os deslocamentos de pacientes com lesão cerebral traumática grave para o único centro de trauma no país (que fica na capital) pacientes são atendidos através da Telemedicina em tempo hábil para melhorar o resultado do tratamentos e reduzir o custo financeiro para o paciente, para a família, bem como para o sistema de saúde, em razão dos deslocamentos. Aponta-se que 66% dos pacientes (números de 2014 a 2016 apenas) não necessitaram de transferência e, claro, evitaram uso de seus recursos financeiros; na China, pela teleconsulta, 249 hospitais especializados foram conectados a 112 hospitais urbanos especializados com o objetivo de melhorar o diagnóstico de neoplasias e doenças cardiovasculares. Em apenas um ano, quase 40% dos diagnósticos realizados nos hospitais rurais foram modificados após a teleconsulta com hospitais especializados e 55% dos tratamentos originais foram modificados após a teleconsulta. Enfim, exemplos não faltam para justificar a importância da Telemedicina para nosso país. 

Mesmo diante dessa posição do CFM pela exigência de uma primeira consulta presencial, o presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), César Fernandes, discordou da obrigatoriedade. Para ele, cada médico deve ter autonomia (e, claro, assumir responsabilidade) para decidir se o encontro presencial será necessário ou não para completar o diagnóstico feito por meio da teleconsulta. E, segundo ele, o CFM deveria "ouvir melhor os médicos...” 

Da mesma forma, o presidente da Associação Paulista de Medicina (APM), José Luiz Amaral, acredita que há pacientes que podem se beneficiar da possibilidade de uma primeira consulta on-line, e outros não. Na visão dele, essa avaliação deveria ficar a critério do médico que atende o paciente, afinal a autonomia do médico deve ser respeitada. 

Fato é que já tínhamos, antes da pandemia, muitos exemplos de sucesso do uso da Telemedicina no Brasil, normalmente através da teleinterconsulta, com números impressionantes na redução de filas de espera para especialistas e de alta resolutividade após a avaliação desses especialistas. Nesse momento da Covid-19, várias organizações apontaram para as altas taxas de resolutividade no uso da teleconsulta e a baixa conversão para consultas presenciais e encaminhamento para serviços de pronto-atendimento. A mídia tem apresentado números diários que dão conta dessa afirmação, com a indicação de que 5 entre cada 10 brasileiros usaram telemedicina. 

Segundo Donizetti Giamberardino, outra preocupação do CFM está na segurança dos dados pessoais, o que, sem dúvida, deve ser objeto de maior rigor. Nesse sentido, concordam as entidades médicas que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) é uma grande aliada da Telemedicina e garante proteção para as informações do paciente. 

Também é uníssono entre as entidades médicas que deva se adotar a mesma remuneração para consultas presenciais e online, fato que sempre preocupa a classe médica.

Outra novidade está no avanço do projeto de lei 550/2021, conhecido como Marco Legal da Telemedicina no Brasil. Seria a solidificação das regras para o uso dessa metodologia no país. Em seu artigo 1º, a lei autoriza "em todo o território nacional, o exercício da Telemedicina para a realização e a prestação de toda e qualquer ação e serviço de saúde e assistência à saúde, inclusive as atividades de apoio à assistência à saúde, por pessoas naturais ou jurídicas de direito público ou privado".

E o novo marco legal também estabelece, entre outras importantes normas, em seu artigo 7º que o atendimento por Telemedicina deve: garantir o acesso suficiente o histórico do paciente pelo profissional médico assistente; deve haver padrões de atendimento; a confirmação da identidade do paciente; e expresso consentimento do paciente. 

Ou seja, o marco busca sintetizar toda a experiência construída nas últimas décadas , mas, especialmente, neste ano de pandemia para legalizar o uso da Telemedicina como facilitador do acesso à saúde, reduzindo a distância dos médicos e de seus pacientes. 

Por fim, é necessário que os médicos se façam presentes nessa discussão e relatem suas experiências nesse primeiro ano de pandemia, o que poderia ser feito através das Sociedade de Especialidades que levariam resultados ao Conselho Federal de Medicina. Necessário verificar o que de fato trará benefício ao paciente, aplicando a máxima da Medicina Primum non nocere (primeiro, não prejudicar).

 



Sandra Franco - consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, doutoranda em Saúde Pública, MBA/FGV em Gestão de Serviços em Saúde, fundadora e ex-presidente da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB de São José dos Campos (SP) entre 2013 e 2018, especialista em Telemedicina e Proteção de Dados e diretora jurídica da ABCIS


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