Ao final de 2019, quando os primeiros casos de COVID-19 foram detectados na China, as manifestações renais dessa doença não pareciam uma preocupação. Os primeiros trabalhos chineses descreviam baixas taxas de lesão renal aguda desviando a atenção da comunidade médica e dos órgãos reguladores de saúde para um único foco: a otimização de recursos para o tratamento da falência respiratória aguda. Porém, com o avançar da pandemia e o caos se instalando na Itália e progressivamente em toda Europa e Estados Unidos. o que se viu foi um estrondoso aumento da necessidade da diálise hospitalar e taxas altíssimas de lesão renal aguda nos pacientes com COVID-19 criticamente enfermos.
Os hospitais e sistemas de saúde estavam desprevenidos. Muito havia se falado
que os pacientes precisariam de ventilação mecânica e muita energia foi gasta
na otimização desse recurso. Mas como fica a diálise nesse contexto? Ainda mais
como aumentar substancialmente a capacidade de realizar diálise sem pensar em
otimizar recursos? Ela depende de máquinas, insumos e banhos. O mundo pagou um
preço alto por ter inicialmente negligenciado a necessidade desse recurso.
A demanda por diálise hospitalar em todo período foi alta e esforços e
adequações foram necessários. Porém, nesse momento a comunidade médica,
principalmente os nefrologistas, se preocupam como será a recuperação da função
renal dos pacientes que enfrentaram o COVID-19 e suas possíveis sequelas a
longo prazo.
É necessário otimizar recursos para acompanhamento ambulatorial da função renal
e estão em mais risco de progredirem para diálise no futuro? A resposta a essa
pergunta precisa de tempo de acompanhamento desses pacientes, mas hoje os
estudos já começaram a apontar algumas respostas e sinalizar riscos.
Para melhor contextualizar as dificuldades passadas e ainda presentes é
importante aprender com que vivemos e trazer tudo o que já sabemos. Pelo menos
um terço dos pacientes internados com COVID-19 terão lesão renal aguda e esses
números são ainda mais assustadores quando avaliamos os internados em terapia
intensiva onde os números chegam a 60-80%. As causas que levam o vírus a
acometer o rim são diversas e multifatoriais, dentre elas: desidratação,
resposta inflamatória, lesão direta do vírus no rim, entre outras.
Outro dado muito relevante é que pacientes com COVID-19 fazem uma lesão renal
aguda mais grave, com maior necessidade de diálise e menos recuperação
intra-hospitalar quando comparados a outras causas de lesão renal aguda, e isso
carreia um maior risco de desenvolver doença renal crônica. Estudos já
mostraram que ao menos 1/3 dos pacientes que apresentam dano renal de Covid não
recuperam a função renal totalmente mesmo após 3 semanas da doença.
Em março de 2021, foi publicado um estudo realizado pela universidade Yale no
EUA numa renomada revista médica (JAMA) que vem agregar muito valor no
entendimento dos danos que o COVID-19 causa no rim e seus riscos a longo prazo.
Esse grupo comparou pacientes com lesão renal aguda por Covid com pacientes que
tinham lesões por outras causas e os resultados foram muito interessantes.
Em conclusão, esse estudo demonstrou que o grupo de pacientes com Covid-19
possuíam uma maior taxa de redução da filtração renal na alta que pacientes sem
COVID-19, mesmo após corrigir para fatores como comorbidade e gravidade da
lesão. Ou seja, a lesão renal aguda por COVID-19 deixa mais sequela no rim que
as outras causas de lesão renal aguda. Tendo em mãos esse conhecimento é
importante que pacientes que tenham apresentando dano renal por COVID-19 tenham
seguimento mais próximo visando minimizar riscos e progressão.
Resumindo os principais aprendizados das manifestações renais de Covid nesse
primeiro ano de pandemia:
1. O rim é frequente e gravemente acometido
2. O risco do dano renal deixar sequelas é maior com Covid que em outras causas
de lesão renal.
3. Quem teve Covid não deve deixar de acompanhar a função renal com médico e de
preferência um nefrologista.
4. Médicos nefrologistas e entidades de saúde devem estar atentas para um
possível aumento de doença renal crônica após a pandemia.
Lectícia Jorge - médica nefrologista e intensivista,
com doutorado em lesão renal aguda pela USP e gerente Nacional de Serviços
Hospitalares da Fresenius Medical Care
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