Meu relacionamento com a escrita foi sendo
construído em doses homeopáticas ao longo dos meus tropeços pela vida. Tenho
certeza de que não seria a pessoa que sou hoje se não a tivesse usado como
ferramenta para superar meus conflitos, pedir ajuda, descrever minhas
experiências e criar, sempre que precisei, universos onde eu me encaixava
perfeitamente, sem qualquer transtorno.
Não tenho como quantificar as vezes que escrevi
para desabafar em textos que tinham destinatários fora ou dentro de mim. No
entanto, foi na adolescência que essa ferramenta provou seu valor.
Nos conflitos internos e nas dificuldades para
exteriorizar minhas bagunças mentais por meio da fala, não me sobrava muito
campo de ação a não ser resolver esses conflitos fazendo uso da única
ferramenta que eu dominava: escrever. Atendendo a um pedido de minha mãe,
passei a visitar uma psicóloga semanalmente. As seções, no entanto, não eram
muito proveitosas porque eu ainda não estava capaz, naquele momento, de soltar
minhas próprias travas. Não conseguia sequer cuspir impropérios contra a vida,
muito menos desabar-me em lágrimas para lavar minhas tristezas.
Descobri então
que conseguia fazer meu coração falar por um canal muito mais lógico, simples e
organizado. Fiz terapia com caneta e papel. E com essa tinta mágica, registrei
no meu caminho a palavra superação.
Na mesma época, produzi incontáveis textos e alguns
livros que se perderam pela minha juventude. Parte desse material sobreviveu e
permanece guardado como troféu de uma luta difícil, travada contra inimigos que
eu desconhecia em um momento propício à ebulição de emoções.
Lá pelos 16 anos tive a única paralisia do sono
diurna de toda a minha vida. O coração confuso misturou-se ao pavor da
experiência e, depois de acordada e mais calma, rascunhei um texto sobre os
sentimentos de um garotinho que vivia triste e perdido. Essa historinha virou
um livrinho chamado O Caminho e foi uma das muitas vezes que a escrita me
salvou de um colapso, permitindo-me organizar minha própria confusão e encarar
meus medos.
Escrever é uma ferramenta de autoconhecimento, mas
é, acima de tudo, uma ferramenta de conhecimento. Do mundo, das pessoas, das
dores e dos amores, das possibilidades e das impossibilidades, do que move o
mundo e do que atrasa o progresso da vida.
A escrita pode levar os pais a reconhecerem a dor e
a alegria do filho, já vi acontecer muitas vezes. Usando-a com sabedoria, ela
pode servir de mapa para tirar um ente querido, ou um paciente, da beira do
precipício. Com ela a gente puxa o fio da superação.
Já adulta, uma doença levou meu pai embora e a
escrita me serviu novamente como consolo e pedido de socorro durante todo o
processo de despedida. Dessa vez, escrevia a Deus, ou a alguém que me ouvisse
do lado desconhecido da vida, e chorava meus tormentos no computador no
trabalho. Coloquei naquelas milhares de linhas o meu adeus parcelado e doído ao
meu eterno ídolo. Com ele, morreram secas todas as minhas palavras e nunca mais
escrevi nada que rebentasse dentro de mim.
Minha produção de palavras passou a trabalhar
então, exclusivamente, para a empresa e foi usada extensivamente em atas,
relatórios e textos técnicos durante todo o período em que estive por lá.
Oito anos depois, quando despertei na cama do CTI
com a certeza de que meu tórax rasgaria com a respiração, eu sabia que, apesar
de parecer impossível, eu era capaz de superar aquilo tudo. No entanto, a
escrita não me ocorreu de pronto. Andava ainda árida, afastada dela, mergulhada
em um poço de tristezas e decepções, muito longe de mim mesma. Esse primeiro
período superei escrevendo de outra forma: com a luz. Com esta caneta invisível
compunha fotografias, capturava as montanhas e as belas paisagens da serra
fluminense durante as muitas trilhas que colocaram meu pulmão à prova. Como
consequência disso, comecei a contar minhas aventuras em um blog de viagens
pessoal, fazendo, aos poucos, as pazes com as palavras.
No ano seguinte foi a vez de a minha mãe partir e a
escrita original continuou enterrada no meu inferno pessoal, amordaçada no
calabouço dos meus próprios assombros.
Meu marido foi essencial no processo de
reconciliação com as palavras. Ele mesmo um escritor, insistia para que eu
voltasse a escrever. Dizia que a autopublicação digital estava aí, pronta para
me receber. Produzi um pequeno romance, que autopubliquei sob pseudônimo e,
pouco depois, durante um sonho lúcido, reencontrei-me definitivamente com a
grande amiga da minha caminhada, de cuja amizade jamais pretendo abrir mão
novamente.
Quando escrevemos, jogamos um pouco de nós no
mundo, doando para quem lê parte de quem somos. Escrever é superar-se.
Por isso, desejo ver florescer, cada vez mais, todo
o tipo de escrita neste país, pois ela pode servir como catarse para esse povo
tão cheio de desenganos.
Por que escrevendo a gente se lê, e se lendo a
gente se cura.
Camila M. Guerra -
escritora, 3 livros e alguns contos na bagagem. É a mais nova escritora que tem
fascinado interessados em temas de ficção paranormal.
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