Hospitais, clínicas, laboratórios ou consultórios médicos estão preparados
para a entrada em vigor da LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados - (Lei
13.709/2018) em agosto de 2020? Como as instituições médicas e hospitalares
cuidam dos dados que coletam?
A LGPD tem
como base princípios como respeito à privacidade, liberdade de informação e
defesa do consumidor e representou uma grande avanço e inovação na
regulamentação do tema no país, inspirada no Regulamento Geral sobre a Proteção
de Dados (RGPD), vigente na União Europeia.
Nesse sentido, é mister que todos se adaptem à lei: as empresas
e os consumidores. Segundo pesquisa divulgada no segundo semestre do ano
passado pelo Serasa Experian, 85% das empresas ainda não estavam preparadas
para as exigências dispostas na LGPD. O estudo envolveu executivos de 508
empresas do país, divididas entre 18 setores de atuação e dos mais variados
portes.
Ao
começar 2020, se repetida a pesquisa, os números não seriam muito diferentes,
em especial no setor da saúde, que ocupava a última posição entre os setores
mais preparados para a LGPD, com apenas 8,7% das companhias em conformidade com
as novas obrigações.
De forma
a buscar mais prazo para adequação das organizações, foi apresentado no
Congresso o Projeto de Lei número 5.762, pelo deputado Carlos Bezerra (MDB-MT),
que propõe o adiamento do início da vigência da LGPD em dois anos. Se aprovado,
as novas regras passariam a valer, apenas, em agosto de 2022.
Chama
atenção a justificação de tal projeto de lei. Carlos Bezerra utiliza-se de
estudo intitulado Brazil IT Snapshot, da consultoria Logicalis, baseada em
pesquisa realizada junto a 143 empresas nacionais, pela qual apenas 17% das
instituições consultadas dispõem de iniciativas concretas ou já implementadas
em relação à matéria. Essas informações são preocupantes considerando que 71%
dessas empresas são de grande porte, dentre as quais 33% possuem faturamento
anual superior a R$ 1 bilhão. Ora, essas empresas dispõem de assessoria
jurídica e recursos financeiros para investir em ações de adequação às novas
obrigações estabelecidas em lei e por que não o fazem?
A
explicação pode estar em outro argumento do autor do PL, no sentido de que a
equipe do presidente Jair Bolsonaro está demorando para definir os membros da
Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), autarquia responsável por
regulamentar a lei e fiscalizar a adequação e aplicação por parte das empresas
e do poder público. Junta-se a falta de ação do Governo com a evidência de que
as empresas priorizam outras ações e contam com uma fiscalização precária no
futuro, bem como os muitos recursos legais para se esquivar do pagamento de
multas.
Também há aqueles que apostam na contratação de um seguro como
forma de se proteger patrimonialmente, caso haja um vazamento de dados. Medida
importante, pois é necessário prever as consequências por eventual vazamento,
mas que não desobriga a empresa de seguir a lei.
Quatro notícias nacionais recentes ilustram um cenário de alerta
para aqueles que não entenderam ainda a importância de proteger os dados, sob
pena de inviabilizar seu próprio negócio. Em dezembro de 2019, uma empresa
provedora de internet e TV a cabo sofreu ataques de hackers e teve seu sistema
ameaçado de sequestro, caso não houvesse o pagamento de US$ 1 mil. Há casos de
hospitais no Brasil que já precisaram pagar o valor exigido pelos hackers para
que os dados de seus pacientes não desaparecessem ou ainda que fossem usados
indevidamente. Imagine um hospital sem dados dos pacientes, sem o registro das
prescrições médicas nos postos de enfermagem, sem informações financeiras.
Outra
notícia refere-se a uma decisão judicial em uma ação proposta em face da
Companhia Metropolitana no Estado de São Paulo cujo escopo foi o de questionar
a segurança de dados em uma licitação para o serviço de sistema de monitoração
eletrônica com reconhecimento facial. Na ação (proposta pela Defensoria
Pública, IDEC e outros autores) a juíza se utilizou de artigos da LGPD para
fundamentar sua decisão no sentido de que devessem ser juntados aos autos
documentos que comprovem, entre outros: a confiabilidade e eficiência do
sistema de monitoração; a análise de impacto de proteção de dados que serão
coletados e tratados; a forma de obtenção de consentimento dos pais em caso de
usuários crianças e adolescentes; como se realizará a governança de dados,
incluindo detalhamento de seu controlador; se haverá compartilhamento de dados
e a finalidade, enfim.
Por fim, uma empresa de georeferência recebeu a temida
notificação do MPDFT (Ministério Público Federal e dos Territórios)
questionando suas práticas de privacidade e de proteção de dados pessoais,
antes da plena vigência da LGPD. Após 15 meses de trâmite, o Inquérito Civil
foi recentemente arquivado, em razão de a empresa comprovar estar em
conformidade com as regulamentações para a proteção de dados. Quantas empresas
estariam preparadas para apresentar com transparência seus processos internos
de tratamento de dados?
Em outras palavras, não se pode mais pensar em continuar a usar
dados sem que se justifique o motivo da coleta, a finalidade, a forma de
armazenar e o tempo de uso dos dados coletados. Sendo assim, o possível
adiamento da vigência da lei caracterizaria um verdadeiro atestado de
incompetência do Estado, tanto pelo Executivo quanto pelo Legislativo, em
especial por afastar o país de outros países que já tratam a proteção de dados
como fundamental para a sociedade de informação. A nova era digital trouxe
avanços e benefícios à sociedade de forma inconteste. Não obstante, o preço a
se pagar está diretamente relacionado ao abalo de direitos como a privacidade,
o sigilo e a dignidade. Há muito a fazer para garantir essa segurança desejada
na lei. Vale lembrar que entre as penalidades para o descumprimento da
legislação está uma multa simples, de até 2% do faturamento da pessoa jurídica
de direito privado alcançando até R$ 50 milhões por infração. Entretanto, o
prejuízo maior está em tornar pública a infração, haja vista que a instituição
perderá sua credibilidade por não cuidar dos dados de seus clientes/pacientes.
A legislação, ainda que careça de regulamentação em vários
aspectos, representa um mudança estrutural na sociedade. A partir do efetivo funcionamento
da ANPD, a fiscalização poderá coibir os abusos, determinar medidas técnicas de
segurança a serem adotadas pelas instituições e punir, administrativamente, o
mau uso de dados. Assim, usar o jeitinho brasileiro para adiar a lei, ou ainda
cumpri-la apenas parcialmente, deixará o país, mais uma vez, com a reputação
comprometida e sem a segurança jurídica necessárias para os negócios nacionais
e internacionais. É isso mesmo que queremos?
Sandra Franco - consultora jurídica especializada em Direito
Médico e da Saúde, doutoranda em Saúde Pública, MBA/FGV em Gestão de Serviços
em Saúde, fundadora e ex-presidente da Comissão de Direito Médico e da Saúde da
OAB de São José dos Campos (SP) entre 2013 e 2018, membro do Comitê de Ética
para pesquisa em seres humanos da UNESP (SJC) e presidente da Academia
Brasileira de Direito Médico e da Saúde.
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