"...Só de
pensar em sair de casa você já começa a ficar apavorado, confuso, tenso,
angustiado e pode chegar até a sentir seu coração disparar. Mesmo sem ameaças
imediatas, você não se sente mais seguro fora do seu lar. Sua casa é o único
lugar que lhe proporciona segurança e proteção. Esse medo, após longos períodos
de isolamento, é justamente o que define a Síndrome da Cabana"
Talvez você
nunca tenha ouvido falar na Síndrome da Cabana. Realmente, este termo, apesar
de ter surgido em 1900, não é muito conhecido atualmente. No entanto, você, seu
vizinho, sua filha, seu amigo, podem estar passando por esta síndrome neste
exato momento sem perceber. Como assim? Afinal, o que é a Síndrome da Cabana?
Imagine que
a quarentena terminou. Já existe uma vacina para o Covid-19. Não há mais
motivos para temer as ruas. No entanto, só de pensar em sair de casa você já
começa a ficar apavorado, confuso, tenso, angustiado e pode chegar até a sentir
seu coração disparar. Mesmo sem ameaças imediatas, você não se sente mais
seguro fora do seu lar. Sua casa é o único lugar que lhe proporciona segurança
e proteção. Esse medo, após longos períodos de isolamento, é justamente o que
define a Síndrome da Cabana. Este nome foi dado em função dos trabalhadores
norte-americanos que se refugiavam em suas cabanas quando o inverno chegava e,
depois, tinham receio de voltar à civilização quando o frio terminava.
O mesmo já
está acontecendo atualmente, devido à quarentena que nos confinou em nossos
lares desde março deste ano. Hoje, algumas pessoas já estão entrando em
desespero com a abertura de shoppings, lojas e relaxamento de alguns com
relação ao isolamento. Não querem, de modo algum, que a quarentena termine.
Obviamente, esse medo pode vir da possibilidade de serem contaminados. Porém, a
Síndrome da cabana, ainda que não aja como fator principal, desempenha um papel
importante na resistência em voltar à vida normal.
Antes da
quarentena, antes do Covid-19, já havia pessoas que não saíam mais de casa.
Trabalhavam em home office, faziam as compras pela internet e passavam períodos
muito longos sem colocar os pés na rua. Nosso cérebro se ajusta à nova rotina e
o confinamento passa a ser normal e necessário.
Mesmo
prisioneiros, após um longo período encarcerados, podem sentir medo de voltar à
civilização e, muitas vezes, podem cometer crimes tão logo saiam da cadeia,
para poderem voltar à vida a qual já estavam acostumados. A mudança nos tira da
zona de conforto, ainda que, para muitos, aquela zona de conforto pareça uma
opção ruim.
Mas o que é
o medo mesmo?
O medo é
uma sensação provocada pelo cérebro que auxilia o indivíduo em sua
sobrevivência e adaptação. Se não sentíssemos medo de nada, não teríamos como
nos defender e provavelmente morreríamos rapidamente.
Este
mecanismo de sobrevivência ocorre a partir do Sistema Nervoso Central. Por
exemplo, quando avistamos uma serpente, esta informação é levada ao SNC e passa
pelo hipocampo (sede das memórias) que vai conferir se aquela informação já
existe. Em seguida, o hipotálamo vai interpretar o que recebeu e relacioná-lo
ao perigo. Ao receber essa interpretação, a amígdala (responsável pelas emoções)
alerta o organismo na forma de medo. Imaginem uma criança que nunca viu uma
cobra nem ouviu nada sobre ela. Ao se deparar com a serpente, não sentirá medo
e provavelmente será picada.
Assim,
sentir medo é não só normal, como necessário. No entanto, há muito medo. O medo
pode ser real, como o medo de um assaltante; o medo pode ser imaginário, ou
seja, não há nada acontecendo de fato, mas sentimos medo de alguma coisa que
não conseguimos definir; o medo pode ser futuro, como o medo da morte; e o medo
pode ser desproporcional ao objeto que o causou.
Quando o
medo não é específico e dura longos períodos, então ele passa a ser chamado de
ansiedade. A ansiedade não tratada e persistente pode levar ao pavor. A
síndrome do pânico, por exemplo, e as fobias, quando atrapalham nossa vida,
causam muto sofrimento e precisam de ajuda profissional.
O processo
da quarentena
Quando a
quarentena começou, sentimos muita dificuldade de adaptação. Nossa rotina
mudou. Pais que só conviviam com os filhos nos fins de semana, de repente se
sentiram perdidos e muito estressados. Marido e mulher começaram a brigar
incessantemente. Chegaram a pensar em divórcio. Viajar? Impossível! Hotéis e
passagens aéreas canceladas ou perdidas. Os estudos passaram a ser realizados
por computador ou celular. Aplicativos, antes desconhecidos, tornaram-se
fundamentais.
Muitos
sentiram falta dos almoços de domingo na casa dos familiares. Páscoa,
aniversários, qualquer atividade festiva precisou ser feita à distância.
Abraços e beijos foram proibidos. Pessoas encheram suas casas de produtos não
perecíveis com medo de não ter o que comer no futuro. Trabalhar em home office
se tornou um desafio. O cachorro late, a criança chora, o prédio ao lado está
em construção (e os trabalhadores não entraram em quarentena), o ônibus passa,
o calor se torna insuportável e não se pode abrir a janela por causa do
barulho, enfim, um caos.
Sem falar
nos que têm (ou tinham) negócio próprio. Lojas fecharam, diversos trabalhadores
passaram a buscar outras atividades para sobreviver, quem tinha pé de meia
começou a ver seu dinheiro indo embora, quem não tinha, precisou contar com a
ajuda do governo.
Mas, de
repente, tudo começou a entrar nos eixos. Amigos passaram a fazer reuniões
semanais por vídeo. Pais começaram a valorizar mais tempo com os filhos.
Descobrimos que podemos achar de tudo pela internet. Ganhamos mais tempo para
ler, estudar, refletir. O casal conseguiu se entender e agora não pensa mais em
se divorciar. Parentes que raramente se viam passam a se ver semanalmente em
reuniões da família. O pôr do sol ficou mais bonito sem tanta poluição.
Psicólogos e Coachings se viram com mais atendimentos. A lista de filmes para
serem vistos um dia começou a diminuir. Enfim, tudo o que era muito difícil no
começo, passa a ser o certo, o bom, o confortável. Pelo menos, para grande
parte da população.
Agora, com
a possibilidade de a quarentena terminar, torna-se necessária uma nova
adaptação. Começar tudo de novo. Ainda existe o medo do vírus, mas mesmo que
não mais existisse, haveria resistência para voltar à vida anterior. Nosso
cérebro passou a entender que somente em casa estamos seguros, protegidos. Fora
de casa, estamos na selva, estamos na guerra. São os efeitos da síndrome.
Então
estamos doentes?
A Síndrome
da cabana não é uma doença, é um fenômeno natural, diante das circunstâncias.
Apesar do nome, não é um transtorno mental, embora possa precisar dos cuidados
de um profissional da mesma forma.
Quem sofre
desse fenômeno pode sentir muita angústia, muita ansiedade, perder a
concentração, perder a memória, passar a comer muito e a dormir muito, embora
possa acontecer de o indivíduo perder o apetite e o sono, e alguns sintomas
físicos também podem se manifestar, como taquicardia, sudorese, tonturas.
Os sintomas
da síndrome podem lembrar a Síndrome do pânico. A diferença é que esta leva o
indivíduo ao isolamento, enquanto na Síndrome da cabana acontece o contrário. O
isolamento leva o indivíduo ao pânico.
Como voltar
à vida normal
Algumas dicas podem ajudar quem está (ou estará)
sofrendo dessa síndrome.
1
– Respeite o seu tempo. Não se obrigue, não se cobre, não se culpe. Cada um tem
um ritmo diferente e o sentimento é totalmente válido. O importante é não
desistir.
2
– Estabeleça uma rotina. Por que isso é importante? Porque na rotina você se
sente no controle e se você está no controle, pode controlar os seus
pensamentos, portanto, pode controlar seu medo.
3
– Comece aos poucos, devagar, e recompense cada passo, cada progresso. Por
exemplo, no primeiro dia, simplesmente abra a porta de sua casa e fique ali,
olhando para fora. Avalie como está se sentindo. Se puder, dê alguns passos.
Senão, feche a porta e se recompense pela sua coragem. No dia seguinte, tente
dar alguns passos para fora. Continue enquanto se sentir confortável. Senão
volte. Continue insistindo todos os dias até conseguir ir até a esquina e
voltar. Não tem problema retroceder. Não tem problema dar um tempo. Apenas
tente. Acredite que você pode. Mas não force. Aumente as recompensas conforme
for progredindo.
4
– Lembre-se de todas as coisas boas que você tinha e fazia ao sair de casa.
Lembre-se de seus familiares, do churrasco na casa dos amigos, do cinema, dos
restaurantes, dos parques, da cervejinha gelada no bar, do sol acariciando sua
pele, do vento bagunçando seus cabelos, das viagens divertidas, enfim, comece a
condicionar seu cérebro para que ele diminua progressivamente a resposta do
medo.
5
– Nada disso está adiantando? Então, procure ajuda de um profissional. Você não
precisa sofrer sozinho nem mais do que o necessário. A Síndrome da cabana,
quando longa e não monitorada, pode desencadear um quadro depressivo grave.
Mas a quarentena já acabou?
Não. Ainda
é preciso tomar muito cuidado ao sair de casa e, de preferência, não sair. Mas
por que já não nos munirmos de todas as informações necessárias para quando
essa hora chegar? Quanto maior o nosso conhecimento, mais protegidos e seguros
estaremos, agora ou no futuro
Além disso,
se pensarmos bem, a tendência é nos isolarmos cada vez mais, com todos
trabalhando em home office, lojas físicas se transformando em lojas virtuais e
sites de relacionamento indicando que hoje os encontros virtuais são cada vez
mais comuns e práticos. Enfim, tudo parece caminhar para que a Síndrome da
cabana se torne um fenômeno menos raro e desconhecido.
Portanto,
que tal começarmos a praticar desde hoje? Vamos começar desde já a enumerar
todas as coisas boas que estão nos esperando lá fora. Vamos escrever todos os
dias, mesmo que a informação se repita. Vamos condicionar o nosso cérebro a
sentir cada vez mais vontade de sair. Um dia a quarentena acabará. Isso é fato.
Então vamos nos preparar para uma nova vida antiga.
Lucia Moyses - psicóloga, neuropsicóloga e escritora. Em 2013, a
autora lançou seu primeiro livro “Você Me
Conhece?” e dois anos depois o livro “E Viveram Felizes Para Sempre”, ambos
com um enfoque em relacionamentos humanos e psicologia. Três anos após a
especialização em Neuropsicologia, Lucia lançou os três primeiros livros: “Por Todo Infinito”, “Só por Cima do Meu Cadáver” e “Uma Dose Fatal”, da coleção DeZequilíbrios. Composta por dez livros
independentes entre si, a coleção explora a mente humana e os relacionamentos
pessoais. Cada volume conta um drama diferente, envolvendo um distúrbio
psiquiátrico, tendo como elo o entrelaçamento da vida da personagem principal. Em 2018, a psicóloga lançou mais três livros:
“A Mulher do Vestido Azul”, “Não Me Toque” e “Um Copo de Veneno”,
totalizando seis livros da coleção. Em 2020, Lucia, lança o livro "A
Outra".
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