Pesquisadores identificaram em pacientes atendidos no Hospital
Universitário de Sergipe, em Aracaju, uma nova espécie de parasita capaz de
causar uma doença semelhante à leishmaniose visceral, porém refratária aos
tratamentos disponíveis. Ao menos uma pessoa morreu em decorrência de
complicações relacionadas à infecção.
Resultados da pesquisa, apoiada pela FAPESP, foram divulgados nesta
segunda-feira (30/9) na revista Emerging Infectious Diseases.
Os dados da análise filogenômica, que permite construir árvores evolutivas com
base em dados de sequenciamento, indicam que o protozoário recém-descoberto não
pertence ao gênero Leishmania, composto
por mais de 20 espécies causadoras de três diferentes tipos de leishmaniose:
visceral, cutânea e difusa (que causa lesões na pele e nas mucosas).
“Do ponto de vista filogenético, a espécie analisada neste estudo está
mais próxima da Crithidia fasciculata, um parasita
de mosquito que não é capaz de infectar humanos ou outros mamíferos.
Conseguimos infectar camundongos com ele e, por esse motivo, acreditamos se
tratar de um novo protozoário, para o qual propomos a nomenclatura Cridia sergipensis”, disse João Santana da Silva,
professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo (FMRP-USP) e membro do Centro de Pesquisa em Doenças
Inflamatórias (CRID),
um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID)
da FAPESP.
O primeiro caso foi confirmado em um
homem de 64 anos, atendido pela primeira vez em 2011 com um quadro clássico de
leishmaniose visceral: febre, aumento do baço e do fígado e diminuição de todos
os tipos de células sanguíneas (pancitopenia).
“Ele recebeu o tratamento padrão e
melhorou, mas teve recaída apenas quatro meses depois. Foi então tratado com a
melhor droga disponível para esses casos – a anfotericina B lipossomal – e
respondeu, mas oito meses depois teve nova recidiva. Desta vez, desenvolveu
pápulas avermelhadas na pele, disseminadas por todo o corpo, algo que não vemos
em leishmaniose visceral”, disse Roque Pacheco Almeida, professor da
Universidade Federal de Sergipe (UFS), chefe do Laboratório de Biologia
Molecular do Hospital Universitário e pesquisador associado ao CRID.
“Infelizmente, com as recidivas,
falhas terapêuticas sucessivas e a disseminação da doença para a pele, o
paciente veio a falecer após a cirurgia para retirada do baço, recomendada em
casos graves que não respondem ao tratamento”, disse Almeida.
Uma biópsia feita nas lesões cutâneas
revelou células de defesa repletas de parasitas, que foram isolados e
criopreservados para análise. Os pesquisadores também isolaram amostras da
medula óssea (durante a segunda e a terceira recidivas) e do baço (após a
remoção cirúrgica).
Inicialmente, o grupo imaginou se tratar de uma infecção atípica
por Leishmania infantum. No entanto, os testes moleculares
existentes para o diagnóstico desse patógeno foram todos inconclusivos nas
análises feitas com os parasitas isolados tanto da medula óssea, quanto das
lesões da pele.
Camundongos infectados com a amostra isolada da pele do paciente
desenvolveram lesões cutâneas e uma leve lesão no fígado. De maneira
surpreendente, a infecção experimental com o novo parasita foi mais agressiva
na pele que a dos animais usados como controle positivo (infectados com a
espécie Leishmania major, causadora de leishmaniose cutânea).
Já os animais infectados com o parasita da medula óssea apresentaram as
manifestações típicas da leishmaniose visceral, como fígado e baço infectados,
mas sem qualquer alteração na pele.
“Percebemos então que esse paciente
poderia estar infectado com dois parasitas diferentes e essa talvez seja a
razão da gravidade do quadro”, disse Almeida.
Genoma
completo
Na tentativa de descobrir com o que
exatamente estavam lidando, os pesquisadores decidiram fazer uma análise do
genoma completo dos parasitas isolados do paciente.
“Mandamos sequenciar também amostras de outras espécies de Leishmania que tínhamos no laboratório, entre elas
a L. amazonenses, a L. braziliensis além
da L. infantum”, contou Silva. A ideia, segundo o
pesquisador da USP, era avaliar se havia alguma semelhança.
As análises de bioinformática que revelaram a proximidade filogenética
da nova espécie com a C. fasciculata foram
conduzidas nos Estados Unidos por José Marcos Ribeiro, do National Institute of
Allergy and Infectious Diseases (NIAID), e por Sandra Regina Costa Maruyama,
pesquisadora vinculada ao Departamento de Genética e Evolução da Universidade
federal de São Carlos (UFSCar) com apoio do Programa Jovens Pesquisadores em
Centros Emergentes da FAPESP.
“Comparando os genomas dos parasitas
isolados da pele e da medula óssea, concluímos que se trata de uma única
espécie, capaz de infectar tanto órgãos internos quanto a pele. Também
concluímos a análise do genoma completo de parasitas isolados de outros dois
pacientes de Aracaju que também não respondiam ao tratamento e confirmamos se
tratar da nova espécie. Há ainda outros 150 isolados para terem seus genomas
sequenciados e analisados”, disse Maruyama.
Segundo a pesquisadora, resultados preliminares – obtidos pela análise
de fragmentos do genoma identificados como chave para caracterização da espécie
– sugerem que a maior parte dos protozoários presentes nos 150 isolados
corresponde ao perfil de Cridia sergipensis.
“Por meio de bioinformática, conseguimos identificar regiões do genoma que
são específicas dessa espécie e validamos experimentalmente. A partir desses
achados podemos desenvolver um teste molecular para fazer o diagnóstico do novo
parasita. Em paralelo, também foi necessário desenvolver um teste molecular
específico para a Leishmania infantum, porque assim
conseguiremos avaliar por qual parasita os pacientes foram infectados e
até mesmo se acontece coinfecção”, disse Maruyama à Agência FAPESP.
Segundo a pesquisadora, o passo
seguinte é tornar a metodologia ainda mais sensível, para que o teste molecular
possa ser feito diretamente com amostras de sangue dos pacientes com suspeita
da doença.
Questões
em aberto
Entre as prioridades de pesquisas
apontadas pelos autores do artigo estão a busca por fármacos capazes de matar
de forma eficiente o novo parasita. Segundo Almeida, testes com diversos
compostos já estão sendo realizados.
Outro desafio é descobrir como surgiu o patógeno e por quais vetores ele
é transmitido para os seres humanos. “É possível que ele seja resultado de um
cruzamento entre a Leishmania com
algum outro gênero ou então resultado de uma mutação genética que conferiu
à Crithidia a capacidade de infectar mamíferos.
Também é possível que ele sempre tenha existido na natureza e, à medida que os
humanos foram invadindo seu espaço, foi se tornando mais próximo”, disse
Almeida.
Na avaliação de Maruyama, é fundamental descobrir se Cridia sergipensis sozinho é capaz de causar uma
doença grave e potencialmente fatal ou se os casos observados seriam resultado
de uma dupla infecção. “É possível que o novo parasita esteja contribuindo para
agravar casos típicos de leishmaniose visceral”, disse.
Tal hipótese, segundo Almeida,
explicaria por que a taxa de letalidade por leishmaniose visceral em Sergipe,
em 2016, foi de 15%, enquanto o esperado seria de apenas 6%. Os casos suspeitos
foram atendidos pela equipe médica da Infectologia e da Pediatria no Hospital
Universitário de Sergipe, vinculado à Empresa Brasileira de Serviços
Hospitalares (Ebserh).
O artigo Non-Leishmania Parasite in Fatal Visceral
Leishmaniasis–like Disease, Brazil, Sandra R. Maruyama, Alynne
K.M. de Santana, Nayore T. Takamiya, Talita Y. Takahashi, Luana A. Rogerio,
Caio A.B. Oliveira, Cristiane M. Milanezi, Viviane A. Trombela, Angela K. Cruz,
Amélia R. Jesus, Aline S. Barreto, Angela M. da Silva, Roque P. Almeida, José
M. Ribeiro e João S. Silva, pode ser lido em wwwnc.cdc.gov/eid/article/25/11/18-1548_article.
Karina Toledo
Agência FAPESP
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