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sexta-feira, 30 de setembro de 2016

O outro lado do Outubro Rosa



A campanha "Outubro Rosa" é talvez a mais conhecida dentre as campanhas de saúde desenvolvidas todos os anos em vários países do mundo. Tem como objetivo "alertar as mulheres e a sociedade sobre a importância da prevenção e do diagnóstico precoce do câncer de mama[1], com sua origem nos Estados Unidos nos anos 90[2] e rapidamente chegando a outros países incluindo o Brasil, que teve a primeira campanha divulgada em 2002[3].

Em que pese a relevância epidemiológica do câncer de mama e o grande impacto que a mesma provoca na vida das mulheres atingidas pela doença, é importante avançarmos na discussão sobre a promoção do rastreamento populacional, especialmente a partir de dois aspectos: a) a fragilidade do rastreamento do câncer de mama enquanto estratégia de redução da morbimortalidade por câncer de mama, particularmente no Brasil; e b) a utilização da campanha como estratégia de marketing sem benefícios diretos à causa, e muitas vezes com danos à população.

A fragilidade do rastreamento do câncer de mama
O rastreamento consiste em "realização de testes ou exames diagnósticos em populações ou pessoas assintomáticas, com o objetivo de possibilitar o diagnóstico e tratamento oportunos, reduzindo assim a morbidade e mortalidade da doença rastreada"[4]. Para o câncer de mama, a estratégia recomendada pelo Ministério da Saúde no Brasil é a de oferecer a realização de mamografia a cada dois anos, mesmo reconhecendo que a evidência que sustenta esta recomendação é fraca, e que "os possíveis benefícios e danos provavelmente são semelhantes" para a faixa etária entre 50 e 59 anos e "os possíveis benefícios provavelmente superam os possíveis danos" apenas na população entre 60 e 69 anos. É necessário realizar 2000 mamografias em mulheres no público-alvo para que uma dessas mulheres tenha sua vida salva pelo rastreamento[5].

Além dos benefícios apenas discretos já antecipados pela análise das melhores evidências científicas disponíveis, esta recomendação não demonstra ao longo dos anos resultados que justifiquem sua manutenção no Brasil, pois não há redução verificada na mortalidade por câncer de mama na população; na verdade, a taxa de mortalidade pela doença tem aumentado[6], o que pode acontecer por melhora na qualidade da informação disponível e pelo aumento da expectativa de vida, entre outras causas. Uma das causas para o insucesso da estratégia brasileira pode residir nos problemas que o país enfrenta para estruturar seu programa de rastreio com base no que recomenda a Organização Mundial de Saúde[7], que incluem, entre outros requisitos, o acompanhamento e garantia de acesso a tratamento das mulheres que tenham rastreamento positivo. Não adianta identificar mulheres com mamografia alterada e não oferecer o acesso oportuno ao tratamento necessário.

Além de ter resultados questionáveis, a estratégia de rastreamento por mamografias também está associada a danos basicamente ligados ao sobrediagnóstico, ou seja, ao diagnóstico e tratamento de tumores que não produziriam dano. O sobrediagnóstico é definido como a detecção de uma anormalidade que não progrediria ao ponto de causar dano ao paciente, e por isso, seu tratamento seria desnecessário[8]. No caso do sobrediagnóstico do câncer de mama, temos danos que variam de danos psicológicos (ansiedade pelo resultado do exame e/ou pelo diagnóstico) até consequências dos procedimentos diagnósticos/terapêuticos (incluindo dor crônica, infecções, cirurgias desnecessárias e mutilações). Estima-se que para cada vida salva pela mamografia teremos 200 mulheres vitimadas por problemas relacionados ao sobrediagnóstico[9].

O Outubro Rosa como estratégia de marketing
Além dos problemas com a estratégia de rastreamento em si, o Outubro Rosa tem um efeito colateral: virou uma estratégia de negócios. Inúmeras empresas associam sua marca à campanha anualmente, lançando produtos ligados ao “laço rosa” de alguma maneira, supostamente se comprometendo a doar parte do valor arrecadado para a causa. À primeira vista parece uma boa ação, mas verifica-se que uma parte irrisória dos lucros é doada, quando o é, de forma que a “causa” mais beneficiada acaba sendo o lucro do empresário “benfeitor”. Em algumas situações a empresa “rosa” produz outros produtos que também estão ligados ao câncer de mama, mas como causa da doença, o que ajuda a demonstrar a hipocrisia da adesão à campanha. Esse processo é denominado “pinkwashing” (em tradução livre, “lavando com rosa”), e já foi fartamente documentado em livros, filmes (vale ver o canadense “Pink Ribbons, Inc.”, infelizmente não lançado em português mas disponível em inglês na internet), e principalmente por uma campanha chamada “Think before you pink” (“pense antes de ficar rosa”, em tradução livre), que tem website próprio e defende a análise crítica dos que usam o Outubro Rosa como estratégia de marketing, disponibilizando várias informações que facilitam essa análise.

Concluindo, é importante pensarmos em estratégias que permitam a redução da incidência do câncer de mama, o seu diagnóstico e tratamento oportunos e, por fim, a mortalidade associada à doença, mas parece que estamos seguindo um caminho que consome uma parcela importante dos recursos disponíveis (que já são escassos) sem trazer os benefícios esperados, e que pode estar trazendo malefícios enquanto ajuda alguns a lucrar às custas do processo. A decisão de se submeter a um exame que está associado a benefícios e malefícios deve ser de âmbito individual, tomada após pleno esclarecimento sobre o assunto. Infelizmente as percepções das mulheres parecem superestimar os benefícios associados à mamografia: um estudo realizado em 2003 identificou que a maioria das mulheres acredita que a mamografia pode evitar o câncer (não pode), que diminui a chance de tê-lo pela metade (quando a redução não chega a 20%) e que reduz a mortalidade pela doença em pelo menos 1% (não chega a 10% disso)[10],[11] . Campanhas populacionais devem discutir estes benefícios e maleficios, e não simplesmente induzir mulheres à realização de exames que podem não entregar o que prometem.




Rodrigo Lima - diretor de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC)


Referências: 

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