A
criança talvez não seja capaz de articular plenamente o modo como seu mundo se
encaixa, nem o homem de expressar o significado de sua vida em palavras. Para a
maioria de nós, a visão do mundo é uma verdade vivida, algo que simplesmente
existe e que dificilmente procuramos descrever. Na verdade, só há motivação
para fazê-lo se algo vai mal, se de alguma maneira nossa visão de mundo está
inadequada ou em fase de mudança. Só então tomamos consciência dela (Danah
Zohar, "O Ser Quântico").
Há poucos anos atrás a maioria de nosso povo, pobre, estava
embalada no cântico de demagogos. As classes sociais haviam deixado de ser
castas. Movimentavam-se de modo ascensional. A pobreza desaparecia. O emprego
mostrava números satisfatórios. O Governo não se queixava de faltas de verbas
públicas. Ao contrário. O FMI poderia receber nossa ajuda. Tirava-se sarro dos
loirinhos de olhos azuis. A crise, ora, uma marolinha num oceano
pacífico.
No momento em que as ondas se agitaram, ainda não foi hora
da consciência do perigo. O Estado socorreu segmentos como o dos automóveis,
sob os aspectos tributário e financeiro. Empréstimos longos, supostamente nos
limites do orçamento, e carros "zero", jamais sonhados. O Brasil
ainda não voava, mas era um avião que taxiava para tanto.
Ninguém percebia - ou queria perceber -
que estávamos assentados sobre um vácuo de falsos potenciais. O dinheiro que
nos mantinha derivara de conjunturas favoráveis, mas se entendia que
caminhávamos sob mudanças estruturais, ainda que sob um Estado politicamente
desorganizado, carente das reformas tão decantadas: política, administrativa,
trabalhista, financeira, tributária. Sobre essas pilastras mal ajambradas, não
se ergueria um estado de bem-estar permanente. Entretanto, a vida
"vivida" dizia outra coisa. E a gerência política mantinha a falsa
impressão, fundamental para seus propósitos eleitoreiros.
É claro que um edifício erguido nessas condições desaba,
como desabou. O mal começou a dar as claras em momento eleitoral e,
consequentemente, foi preciso manipulá-lo, fazer o diabo para manter o projeto
de poder. Vieram à lume os acordos indecorosos com o legislativo para manter-se
a miragem. A lei não poderia permanecer morta e ressuscitou. Ídolos começaram a
descambar, um indício de que a consciência coletiva da maioria poderia começar
a despertar para necessidade de mudanças, segundo aquele postulado da
física.
Em verdade, são poucos os que têm consciência da vida do
momento, seja materialmente boa ou má. A consciência mira o futuro, dias
melhores (a teleologia aristotélica). É mais fácil saber o que queremos, ou com
o que sonhamos, do que ter clareza sob os componentes de nossa realidade atual.
O barco soçobrou e, agora assim, temos
consciência de que devemos escapar do naufrágio. Em política, porém, não há
consenso. Felizes dos países que se limitam a dois grupos antípodos. Temos uma
miríade de partidos sem cor, sem dor e sem valor, em que preponderam interesses
pessoais e grupais.
O que se apresentou como ideológico se transformou numa
gosma solidária de solidariedade aos corruptos. Dizem que retornarão do zero,
da brancura das virtudes. É pagar para ver.
Só há um caminho, ainda que não se tumultue tudo com a
deposição do governo provisório sob uma alegação de urgência e indesejável
correria. Não há dúvidas de que, agora, conscientes do futuro, não mais
crianças ou adultos alienados, devamos pensar na extração de nossos caroços
prontos a se metastasiar, a partir de um novo texto constitucional que
estabeleça com densidade e força os princípios das reformas estruturais, sem as
quais não teremos sequer como caminhar a pé, pausadamente, mas em frente e com
segurança.
Amadeu Roberto Garrido de Paula
- advogado subscritor da respectiva petição inicial e poeta. Autor do livro
Universo Invisível, membro da Academia Latino-Americana de Ciências Humanas.
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