Todos os ramos do conhecimento devem ser, ainda que em grau
mínimo, conhecido pelo povo leigo. Uma mãe, abandonada com seu filho num
longínquo rincão, sabe que, quando a tosse e o catarro se avolumam,
provavelmente há necessidade de um antibiótico. Não é difícil explicar ao leigo
que somos comandados pela lei da gravidade. Do mesmo modo, aquele que
desconhece a engenharia, sabe muito bem que um grande prédio assentado sobre o
lodo pode vir a desabar.
No mundo do direito, todos sabem que é
proibido roubar ou matar alguém. Todos sabem que, ao pagar uma dívida, é bom
ter um recibo, pois, do contrário, poderemos ser obrigados a pagar novamente. O
casamento não pode se repetir, quando não houve divórcio e o cônjuge é vivo. Se
moro na casa de alguém, sei que devo pagar um aluguel.
Nosso sistema diz que ninguém pode alegar
ignorância da lei. Os melhores juristas desconhecem muitas leis, mas o
princípio é necessário, para que não se argumente com a ignorância da lei ao
praticar um homicídio. Cesare Beccaria, consciente do grave problema, dizia que
as leis devem ser simples, poucas, compreensíveis pela maioria dos homens.
Todavia, o que vemos no mundo contemporâneo, especialmente no Brasil, é o
contrário. O cipoal de leis é cada vez mais grosso e complexo, provavelmente
para esconder nos meandros do labirinto os corruptos e surrupiadores do
dinheiro público.
Os homens precisariam conhecer, ainda que
intuitivamente, as molas mestras do direito. Para tanto, é imprescindível a
simplicidade de que falou o jurista. Se nosso direito termina onde começa
o alheio, a clareza é fundamental. Não há, contudo, clareza em linguagem
empolada, que contribui não para exprimir, mas para ocultar os
pensamentos.
Essa tão importante pedagogia popular foi
sucateada pelo processo de impeachment. A acusada e apoiadores correram a
tornar complexo o que é simples. Claro, se ninguém entende o porquê, é golpe.
Golpe parlamentar, fundado, minimamente, num direito obscuro.
Assim, a defesa, quanto à responsabilidade da
Presidente, inventou mais uma tese de impunidade. Responsabilidade da
burocracia. Prendam a burocracia. Ninguém é responsável, não obstante a lei
defina os crimes dos chefes do executivo, prefeitos, governadores, presidentes
da república. Crimes de responsabilidade. Ainda que não praticado pelo chefe, a
autoridade é responsável.
Isto veio para corrigir um péssimo costume de
nosso direito penal político, presente quando de meus primeiros anos de
advocacia. Atribuía-se a culpa, de preferência, ao servidor da mais baixa
hierarquia. Quase sempre ele era condenado, administrativa ou criminalmente.
Porque alguém deveria ser condenado... E não poderiam ser as autoridades
maiores.
É certo que um chefe do executivo não pode
conhecer tudo o que ocorre no amplo universo de sua administração. Mas, há
critérios para responsabilizá-lo, quando ninguém assume a culpa e muito menos o
dolo. Do direito atual são inseparáveis a racionalidade e a proporcionalidade.
Não é necessário ver a assinatura do presidente num documento, para
definir-se a autoria. Basta ver, pelos costumes diários, que determinado ato,
por suas proporções, não poderia ter sido praticado por alguém de escalão
inferior, até mesmo ministros. O fato somente poderia ocorrer por ordem do
chefe. Simples assim. Atos de bilhões, que depauperaram nossos cofres e nossa
economia, não assumido por nenhum ministro e por ninguém, capazes de levar a
república ao lixo, somente poderiam ser imputados ao chefe maior. A autoria,
Dr. José Eduardo Cardozo, está mais do que clara. Os sinos do campanário dobram
nesse sentido. Fora disso, é a impunidade, nosso mal maior. Alguém poderia
pressionar a direção do Banco do Brasil a perpetrar ato manifestamente ilegal,
senão a própria presidente da república? Quem tem o mínimo de conhecimento
sobre nossa administração direta e indireta não tem dúvida disso. Definir a
autoria de um ato criminoso é algo singelo, mas, se for possível, por meio de
sofismas, atribuí-la a uma burocracia fictícia, sem nervos para sofrer e honra
a defender, estaremos no melhor dos mundos possíveis. Essa foi uma das táticas
de defesa desenvolvidas em favor da presidente.
Outra simplicidade, outro limão convertido numa limonada.
Se a presidente determinou, demagogicamente, com o propósito de
reeleger-se, momento em que se faz o diabo, que empréstimos do Banco do
Brasil a produtores rurais não passassem de 6%, cobrados pelo banco, e que os
restantes 6%, até atingir-se a taxa obrigatória de 12%, seriam pagos pela
União, qual o prazo para a União pagar o complemento? Obviamente, vence-se a
obrigação da União no mesmo momento em que o tomador do empréstimo paga sua
prestação, com acréscimo de 6%. O complemento faz-se na mesma hora. Depois
disso, a União ficou em débito com o banco, submeteu-se a mais juros, inclusive
pela taxa Selic, detrimentando os cofres públicos e fazendo cortesia política
com chapéu alheio, para vencer eleições. Todos se lembram: "quebro o
Banespa, mas faço meu sucessor". E quebrou.
Economistas e juristas, com o devido respeito,
de estatura pouco significativa em nossa respectiva intelligentia especializada, sustentam que os
juros do atraso não constituem operação
de crédito, mas, simplesmente, juros devidos pela mora.
Descem ao impróprio campo do direito privado para elucubrar essa teoria das pedaladas fiscais, diria
que torna ainda mais incompreensível pelo povo
os atos presidenciais.
Não estão certos. A União, com sua força hierárquica,
determinou ao Banco do Brasil que concedesse ao agronegócio juros menores. A
diferença seria honrada por ela, União. Esse ato jurídico compulsório e incontrastável
por um estabelecimento bancário subordinado, no momento em que a pessoa
política não honrou a obrigação, converteu-se em empréstimo do banco à
administração pública. Como, há décadas, assumimos o hábito de substituir o
"juridiquês" pelo "economês", a esse empréstimo foi dado o
nome de operação de crédito.
Insiste a defesa que não se trata disso. Seria simples
inadimplência, com suas consequências. Conceitos e preceitos de direito
privado, porém, são inaplicáveis no direito público, salvo em casos de absoluta
omissão deste. Em verdade, o que ocorreu foi a transferência de dinheiro de
instituição de economia mista ao governo, que deles fez uso para sustentar as
eleições de 2014. Vencedor do pleito, o governo poderia quitar imediatamente os
juros ainda abertos pela operação de mútuo. Porém, não o fez, contrariamente a
recomendações confessadas pela equipe econômica, porque tinha de ocultar o mal
estado das contas públicos, no momento imediatamente seguinte às eleições.
Honrou o compromisso somente depois de meses.
Postas essas premissas, se não foi operação de crédito,
tratou-se de empréstimo
compulsório, sem lei. Sob o ponto de vista da responsabilidade do
agente público situado no topo da hierarquia, criminalmente, é ainda mais
grave. Empréstimo compulsório,
sem lei, configura o crime pelo qual é responsabilizada nossa presidente.
Segundo o professor de Direito Constitucional da USP, prestigiado pela
jurisprudência, José Afonso da Silva, "O
empréstimo compulsório só pode ser instituído pela União, mediante lei
complementar, (à Constituição), para atender a despesas
extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de desastre ambiental, de
guerra externa ou sua iminência e no caso de investimento público de caráter
urgente e de relevante interesse nacional. (...) É "contrato de empréstimo de
direito público." Logo, ato de império dessa natureza, sem
observância de seus rígidos pressupostos, é crime extremamente grave do chefe
do executivo nacional.
O crime se consumou, como cansaram-se de dizer
o Prof. Miguel Reale Jr. e a Profa. Janaína Paschoal. Porém, o grupinho do
Incrível Exército de Brancaleone continuou a torcer e distorcer a
simplicidade. Foi procedimento sabe-se lá de que natureza, mas sempre sem
culpa grave, dolo e fora do direito penal.
Para finalizar: créditos complementares
somente podem ser abertos com autorização do Congresso Nacional. Sem essa
autorização, pela voz da lei, são objeto de crime de responsabilidade. Isso foi
comprovado. E a defesa passa sobre esse aspecto como gato sobre brasas. "Tollitur
quaestio". Voltemos à simplicidade da língua portuguesa: caso encerrado.
Impeachment aprovado. Simples assim.
Amadeu Roberto
Garrido de Paula - advogado e poeta. Autor do livro Universo
Invisível e membro da Academia Latino-Americana de Ciências Humanas.
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