Terapeutas relatam casos de sucesso e explicam como alinhar as expectativas durante a relação amorosa com um indivíduo com TEA
Conhecer profundamente o TEA
(Transtorno do Espectro Autista) é o primeiro passo para as
pessoas que desejam estabelecer um vínculo amoroso com um indivíduo autista.
A pessoa com autismo apresenta o desenvolvimento de
seu organismo com os mesmos marcadores entre a infância, adolescência e vida
adulta de uma pessoa que não é autista. O que muda para esses indivíduos é o
repertório comportamental para lidarem com as relações.
O TEA é descrito pelo Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V) a
partir de duas categorias centrais:
Categoria A)
- déficits persistentes na comunicação e na
interação social em múltiplos contextos - como dificuldade para iniciar ou
responder a interações sociais;
- déficits nos comportamentos comunicativos não
verbais usados para interação social;
- problemas para desenvolver, manter e compreender
relacionamentos.
Categoria B)
- padrões restritos e repetitivos de
comportamentos, interesses ou atividades, exemplificados por movimentos
motores, uso de objetos ou fala estereotipados ou repetitivos;
- insistência nas mesmas coisas, adesão inflexível
a rotinas ou padrões ritualizados de comportamento;
- hiper ou hiporreatividade a estímulos sensoriais
ou interesse incomum por aspectos sensoriais do ambiente.
Para exemplificar na prática, indivíduos com déficits
nos comportamentos comunicativos e na interação social possuem dificuldades na
comunicação e na interpretação das relações, sendo mais um agravante para
manter vínculos duradouros e trocas emocionais bem interpretadas.
Pessoas com TEA, dependendo do grau, podem
processar as informações em partes, o que limita a sua capacidade de perceber
uma situação como um todo. Ou ainda, podem possuir dificuldades de desenvolver
raciocínios subjetivos ou abstratos e, por isso, entendem o que está sendo
falado de forma literal.
Um outro exemplo também é que um indivíduo com TEA
pode ter a característica de captar os estímulos do mundo de forma
hipersensível ou hipossensível e, assim, ter menos ou mais tolerância para
escutar um volume de som mais alto, ou ainda pode sentir mais ou menos dor que
o esperado, quando é machucado.
Esses são apenas alguns exemplos de características
comuns presentes em pessoas com autismo, mas é importante ressaltar que os
indivíduos manifestam os sintomas de maneiras diferentes entre si. Atualmente,
há três classificações baseadas em suas necessidades para melhor compreensão
dos diferentes graus do autismo:
1) exigindo apoio muito substancial
2) exigindo apoio substancial
3) exigindo apoio
De acordo com Larissa Aguirre - Psicóloga e
Analista do Comportamento - Supervisora ABA do Grupo Conduzir:
“Independentemente do grau do
TEA, suas características refletem diretamente em seus relacionamentos
amorosos, porém em diferentes níveis de intensidade. Quanto maior o nível de
apoio (exigindo apoio muito substancial), maiores
serão os desafios em relação a esse aspecto.
Os estudos indicam que os déficits em habilidades
sociais, de comunicação, os interesses restritos e repetitivos e a
hipersensibilidade são possíveis fatores limitantes do desenvolvimento sexual
nas relações amorosas. Alguns dados apontam para a identificação de desejos
sexuais voltados especialmente a vivências solitárias da sexualidade e menor
frequência de práticas sexuais com outra pessoa, em comparação à população como
um todo”, reforça Larissa Aguirre.
Alinhando expectativas durante o relacionamento
As principais dificuldades encontradas pelas
pessoas com TEA durante um relacionamento amoroso estão relacionadas com
habilidades que são pré-requisitos para a vivência da sexualidade, como:
- iniciar interação social;
- dosar o uso do humor;
- habituar-se melhor às mudanças inesperadas;
- desenvolver um equilíbrio entre o falar e o
ouvir;
- compreender que seu interesse por assuntos
específicos pode não ser compartilhado por outros etc.
O envolvimento social com amigos e colegas
desempenha também um papel importante e está diretamente relacionado ao nível
de dificuldade em se engajar em relações amorosas. Entender os fatores e as
características do autismo são pontos-chaves de empatia para ajuda-los nessas
situações.
Por essa razão, para se relacionar amorosamente com
uma pessoa autista, é essencial ter paciência e compreensão. É
fundamental que a pessoa que se relaciona explique claramente como se sente e o
porquê de suas emoções.
Outra peculiaridade do autismo é a importância que
a rotina tem para essas pessoas. Devido à hipersensibilidade à mudanças, o
indivíduo pode apresentar desconforto diante de modificações nos costumes e
atividades. Por isso, ao se relacionar com pessoas com autismo, é importante
respeitar o tempo e espaço demonstrados por elas e fazer mudanças graduais.
É necessário dizer que não temos um manual para se
relacionar com um indivíduo autista. Estaríamos, mais uma vez, reforçando o
preconceito social em relação ao estereótipo popular criado.
Portanto, não há dicas generalizadas com rituais
comuns para se relacionar, e assim também se aplica a indivíduos com TEA. As
relações amorosas entre pessoas se dão de diferentes formas, e dependem de
aspectos pessoais que determinarão a longevidade e intensidade dessa relação. Renata
Michel, que é BCBA (Board Certified Behavior Analyst), Mestre e Doutoranda em
Análise do Comportamento e coordenadora do Instituto de Pesquisa Conduzir,
explica um pouco mais sobre sua vivência em consultório sobre o fato:
“Já houve situações na minha vida profissional, nas
quais o comportamento a ser trabalhado foi desde uma dificuldade de comunicação
de sentimentos (característica bastante comum ao quadro de TEA), até a
existência de comportamentos ritualizados. Muitos comportamentos humanos
impedem os indivíduos de se relacionarem de forma mais feliz – e isso não é
exclusivo do autismo.
No entanto, posso afirmar que na minha experiência,
a dificuldade mais comumente encontrada é a comunicação com o parceiro. Esse
déficit normalmente afeta mais a comunicação de sentimentos e expectativas –
aquilo que é mais abstrato tende a ser mais difícil para um indivíduo com
autismo compreender. A terapia comportamental e cognitivo comportamental
individual é o que hoje temos como a melhor forma de desenvolver tais
habilidades.”
O que dizem
as pesquisas - tratamento e oportunidades para a vida adulta
“Os estudos, em geral, apontam para a escassez de
programas educativos específicos sobre sexualidade, para a privação de direitos
e de experiências sexuais, para o pouco acesso às informações, e
consequentemente, para a grande vulnerabilidade com relação à violência
sexual.” Ottoni, A. C. V., & Maia, A. C. B. (2019) -
Considerações
sobre a sexualidade e educação sexual de pessoas com transtorno do espectro
autista. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação.
Esse dado demonstra, mais uma vez, sobre a
necessidade de fomento de pesquisas e informação com qualidade para inserir
socialmente indivíduos com TEA. A privação de direitos sexuais é uma realidade,
e a vulnerabilidade em relação à violência nessa área aponta um vácuo esquecido
pelas autoridades que têm o dever de promover o bem de todos, garantindo o
pleno desenvolvimento da pessoa, o exercício da cidadania.
“Temos hoje poucas pesquisas que investigam essa
questão, e é um desafio que busquemos essa ampliação. Quanto mais base
científica houver para nos mostrar quais caminhos são melhores, teremos a
resposta que nos permite proporcionar um serviço que gere melhores resultados,”
reforça Renata Michel.
É esperado e possível que um indivíduo autista
tenha independência na vida adulta, tratando-se de relacionamentos amorosos.
Como por exemplo, casar e ter filhos, caso seja esse um desejo dele, desde que
o indivíduo tenha acesso ao tratamento adequado para alcançar tal nível de
independência.
O que é de conhecimento dos especialistas que
atendem e lidam com pessoas com TEA é que a intervenção precoce - indicada pela
OMS (Organização Mundial da Saúde), chamada ABA (Análise do Comportamento
Aplicada) - é a comprovada e indicada para o desenvolvimento de habilidades de
autistas. ABA é a ciência que estuda maneiras de intervir e modificar o
comportamento de qualquer indivíduo, e que apresenta significativas contribuições
para o desenvolvimento de habilidades necessárias para melhorar a qualidade de
vida de pessoas com autismo – independente do grau de autismo:
“Importante ressaltar que o profissional que aplica
ABA, chamado de Analista do Comportamento, que se proponha a realizar tal
trabalho e endereçar tais questões, deve possuir experiência teórica e prática
para que a aplicação da ABA seja, de fato, capaz de gerar resultados
significativos para a vida do paciente - algo que vemos cotidianamente em
nossos atendimentos clínicos”, comenta a coordenadora do Instituto de Pesquisa
Conduzir, Renata Michel.
Cidadania e inclusão - informar
para inserir
Devemos desmistificar o TEA e lembrar que cada indivíduo é único e cada
um se desenvolve de acordo com os estímulos recebidos e características
próprias. Qualquer generalização acerca das habilidades de um indivíduo autista
retira a possibilidade de análise de cada um de forma única. O diagnóstico de
TEA prevê comportamentos que identificam o transtorno, mas que podem e variam
muito para cada indivíduo. A melhor maneira de desconstruir preconceitos
é justamente tratar cada um em sua singularidade. Assim como explica Renata
Michel:
“Não existe uma correlação direta entre graus de
autismo e a habilidade para o desenvolvimento de relacionamentos amorosos, uma
vez que cada indivíduo é único e deve ser assim analisado. No entanto, podemos
observar que indivíduos com autismo severo acabam desenvolvendo habilidades que
pouco provavelmente propiciarão esse tipo de vínculo afetivo. Já os indivíduos
com autismo de alto funcionamento podem apresentar menos dificuldades, mas isso
não garante que não terão grandes desafios em suas relações.”
O importante é que os responsáveis e também os
profissionais que trabalham com pessoas com TEA e/ou outras deficiências não
limitem sua visão aos estereótipos e preconceitos e reflitam continuamente
sobre suas ideias e ações. Não tirem conclusões precipitadas e
preconceituosas, perguntem sobre seus desejos e intenções e trabalhem ao máximo
para que eles se concretizem. Intervenções eficazes abrem portas para a independência
e para o conhecimento dos direitos à educação, trabalho, vida em família,
afetiva e sexual.
Para finalizar, Renata Michel comenta o caso de um
paciente:
“Certa vez, em um atendimento ainda como terapeuta,
recebi um cliente que tinha 18 anos e um grau de autismo classificado como
leve. Ele recebeu Intervenção em ABA desde os 12 anos e desenvolveu muitas
habilidades. Aos 18, como qualquer adolescente, ele queria conhecer e namorar
uma menina. A grande dificuldade dele era entender se a menina que ele gostava
estava interessada nele – exatamente pela dificuldade de interpretação dos
comportamentos dela. Trabalhamos essa habilidade em terapia e ele descobriu que
ela não estava interessada nele, mas essa habilidade o tornou capaz de
reconhecer, alguns meses depois, que uma colega de escola poderia ter tal
interesse. Ele não apenas aprendeu a interpretar o comportamento que chamamos
de “flerte”, mas conseguiu sua primeira (de muitas) namoradas.”
Fontes: Renata Michel –
BCBA (Board Certified Behavior Analyst), Mestre e Doutoranda em Análise do
Comportamento, coordenadora do Instituto de Pesquisa Conduzir
Larissa
Aguirre - Psicóloga e Analista do Comportamento - Supervisora ABA do Grupo
Conduzir
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