Ninguém detém o monopólio da verdade. Logo, o
debate deve ser cultivado, pois é fonte de aprendizado. Mas, como dizia Roberto
Campos, o debate honesto pressupõe o conhecimento dos termos do problema.
Tornou-se moda no Brasil rotular de “neoliberal” qualquer medida que não seja
estatizante ou reprovada pelos socialistas. Para começo de conversa, o Brasil
nunca foi liberal, nem neo nem velho. É precisamente o contrário: o currículo
do país contém um elenco de características antiliberais.
O país não tem moeda conversível. Há monopólio do
câmbio (a flutuação do preço do dólar é livre, mas não há liberdade para reter
ou transacionar internamente em moeda estrangeira). Num espaço de 20 anos,
houve cinco planos econômicos, quatro congelamentos, um confisco, uma moratória
internacional e várias mudanças de padrão monetário. Quando Collor assumiu, o
país tinha 546 empresas estatais, entre elas vários monopólios. Os maiores
setores da economia eram monopólios estatais (petróleo, energia, portos,
aeroportos, telecomunicações, siderurgia, mineração, comércio de trigo, de
café, de açúcar e de álcool, etc.).
A carga tributária nominal nas três esferas da
federação é estimada em 45% do Produto Interno Bruto (PIB). A arrecadação
efetiva do governo é de 33% do PIB. A previdência social dos trabalhadores
privados é um monopólio estatal. Até um ano atrás, não havia liberdade de
negociação salarial. A educação em todos os níveis é regulada pelo governo. A
saúde em sua maior parte é monopólio do SUS (não necessariamente ruim). Dos
recursos depositados no sistema financeiro pela sociedade, o governo é o maior
cliente tomador de empréstimo.
Em 2018, a Fundação Heritage mostrou o Brasil na
posição 150 no ranking de liberdade econômica entre 180 nações avaliadas, ou
seja, um índice inferior a 149 países. Entre 32 nações do continente americano,
o Brasil é apenas o 27.º colocado, isto é, somente cinco nações têm pior
ambiente de liberdade para abertura de negócios. Em 2017, o Banco Mundial
divulgou seu relatório Doing Business e, sobre o tempo gasto para abrir uma
empresa, o Brasil ficou na posição 175 entre 190 países listados. Enquanto na
Nova Zelândia, a primeira colocada, abre-se uma empresa em dois dias, no Brasil
são necessários 79 dias em média.
Chamar um país assim de liberal é blasfêmia
científica. Os liberais não são antiestado. Há problemas cuja solução depende
de ação coletiva e necessitam de coordenação estatal. A preservação da
liberdade requer uma instituição capaz de proteger os indivíduos das agressões
de outros indivíduos (função policial), dar solução aos conflitos e desavenças
(função judicial) e defender a sociedade da agressão externa (função militar).
Para os liberais, o exercício dessas três funções pelo Estado é legítimo e
indispensável para garantir os direitos individuais à vida, à propriedade e à
segurança.
Atribuir as mazelas econômicas e sociais do Brasil
ao neoliberalismo é uma acachapante falta de lógica. Não há relação de causa e
efeito. A pobreza brasileira resulta décadas de estatização e intervenção
governamental com seus déficits, inflação, dívida pública e tributação
crescente. No dia 28 de junho de 1989, o então candidato do PSDB à presidência
da República pelo PSDB, Mário Covas, considerado um dos mais brilhantes homens
da esquerda brasileira, fez seu discurso de campanha, no qual reconhecia que
não havia liberalismo nenhum no Brasil. E isso foi antes da queda do Muro de
Berlim em 9 de novembro daquele ano, e antes da desintegração do império
soviético no ano seguinte.
Covas foi deputado federal, senador, prefeito da
capital paulista, governador do estado de São Paulo e era militante do mesmo
grupo de esquerda do qual nasceu o PT e PSDB. Aquele discurso como candidato,
na eleição que elegeu Fernando Collor, chocou as esquerdas justamente por ele
dizer que o Brasil precisava de um choque de capitalismo. “O Brasil não precisa
apenas de um choque fiscal. Precisa, também, de um choque de capitalismo, um
choque de livre iniciativa, sujeita a riscos e não apenas a prêmios”, disse
Covas.
Em outro trecho, Covas afirmou: “Hoje, com a
aceleração das transformações tecnológicas, geopolíticas e culturais que o
mundo está atravessando, a opção é manter-se na vanguarda ou na retaguarda das
transformações. É com esse espírito que temos de reformar o Estado no Brasil.
Tirá-lo da crise, reformulando suas funções e seu papel. Basta de gastar sem
ter dinheiro. Basta de tanto subsídio, de tantos incentivos, de tantos privilégios.
Basta de empreguismo.
Basta de cartórios”. O Brasil ficou chato e previsível.
Não inova nem nos erros. Passados 30 anos, os problemas são os mesmos. E a
culpa é só nossa. Como disse Shakespeare na peça Hamlet, “está em nós mesmos,
meu caro Brutus, e não nas estrelas, as causas de nossas desgraças”.
José Pio Martins -
economista, reitor da Universidade Positivo.
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