O mundo jurídico
civilizado aprendeu, nas academias e nas lides processadas e resolvidas pelo
Estado, a interpretar as leis antes de aplicá-las aos casos concretos da vida
social. Contudo, o povo não alcança essa reflexão, o que é muito compreensível.
Há muito tempo de pensares jurídicos, os operadores do direito deixaram de dar
crédito ao que disseram os romanos: "in claris cessat interpretatio"
(na clareza da lei não há o que se interpretar). Em todos os casos,
justifica-se uma reflexão sobre o modo de entender a norma jurídica e
materializá-la.
A interpretação
da norma, que, no Brasil, teve como principal especialista o professor e
ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Maximiliano ("Hermenêutica
e Interpretação das Leis", entre inúmeros outros estudos e lições), em
todos os casos, inclusive nos aparentes mais simples ou simplórios, é
imprescindível. Cumpre verificar as causas sociais do momento em que a norma
foi criada ("occasio legis"), a razão pela qual ela veio ao mundo do
direito. a ("ratio legis"), a significação no campo mais amplo da
normatividade como um todo (interpretação sistemática), a finalidade
("interpretação teleológica"), eventual decrepitude no passar
dos tempos, (embora nosso direito positivo não preveja a revogação automática
por anacronismo), a interpretação em conformidade com a lógica jurídica
plasmada ao correr dos litígios por séculos e por meio dos Tribunais de
inúmeros países, seu ajuste de acordo com os princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade e os preceitos e garantias constitucionais.
John Rawls lança
mão de uma virtude do cérebro humano - a capacidade de refletir sobre os vários
aspectos de um fato - para aquilatar sobre o verdadeiro sentido da norma
jurídica. Há uma norma inicial - fundadora dos raciocínios jurídicos -
lastreada nas hipóteses de contratos sociais -, Rousseau, Locke, Hobbes - irmã
da regra fundamental de Kelsen - em torno das quais as reflexões e, sobretudo,
aos autorreflexões sobre o direito devem ser desenvolvidas.
Em suma, o homem
comum, no sentido de não ser versado em direito, antes de levar-se pelas
emanações concretas das regras a ele enunciados - em seu dia-a-dia - deveria
depositar sua reflexão e, não raro, modificar sua impressão original, a quem
ninguém desmerece em seu grupo social, pois é da necessária dinâmica do ser
pensante a mudança de seus pensamentos. Infeliz, para si e para a sociedade, o
ser amarrado a convicções que imagina corretas e das quais não se liberta - em
suposto caráter de coerência.
Ao mesmo tempo,
repensar sobre o significado do comando. Numa cidade como São Paulo,
exemplificativamente, em que a carência de mobilidade urbana torna os espaços
disputadíssimos e fonte de neuroses, a tendência é seguir as regras
sinalizadas. As demarcações são mais impositivas que os métodos
interpretativos, desconhecidos, como afirmado, pela imensa maioria. Daí
decorrem muitos desentendimentos, conflitos verbais, físicos e até mesmo mortes
por homicídios. São os determinados crimes por motivo fútil. Temos um índice
deplorável de homicídios por ano, mas não são classificados por suas motivações
- torpezas, futilidade, justificadas por necessariedades - legítima defesa sem
excesso.
Daí promana a
futilidade do "dono do direito". Se estou numa via preferencial,
relaxo, por atribuir exclusivamente ao outro o dever de evitar um acidente, por
mais consequenciais que sejam. Se vejo alguém num pátio onde alguém estacionou
seu carro fora dos lindes sinalizados, acredito-me no direito de buscar
explicações junto ao infrator, não raro com dissidências lamentáveis, ainda que
o fato não me incomode, face à existência de espaços vazios. Não se pensa como
uma vítima de danos ("pas de nullité sans grief"), mas como um todo
poderoso alguém que pilhou outro numa infração corriqueira, sem dolo e danos,
que o ordenamento relega ao poder de polícia administrativo, com direito a
censurá-lo, admoestá-lo - exerce-se aí um pouco de poder.
Ninguém
compreende, como é óbvio, a tríplice cognição de Miguel Reale (fato, valor e
norma), na inteireza de seus receptivos conceitos.
Diz-se - talvez
uma lenda - que na Austrália até canguru conhece a Constituição, mas o esforço
de divulgar o Direito, a Ética, o possível conceito do justo, a equidade,
deveria nos acompanhar durante todos os cursos ainda que não jurídicos. Para,
por meio da autorreflexão, revivescíamos valores e aceitar com nobreza a
democracia que Rawls deriva da cooperação racional e razoável entre os membros
de uma sociedade, para que esta possa sobreviver, não obstante sua naturais
diferenças de atribuições, funções etc. É a essência da justiça distributiva.
Talvez sob o sistema do "common law" as reflexões sobre o
significado da lei sejam mais críticas e autocríticas, porquanto a lei é
apenas um dado referencial, não dispensando outros modos igualmente importantes
de soluções jurídicas, que não embotam os cérebros.
Se não
dispensássemos - enquanto leigos - a tarefa intelectual de pôr em prática a
democracia de cooperação, não teríamos um Judiciário quase enfartado,
nossa vida social seria muito menos tensa e tudo correria com uma leveza
dissipadora do ódio que nos embrutece.
Amadeu
Garrido de Paula - Advogado, sócio do Escritório
Garrido de Paula Advogados.
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