Ancara, a capital da Turquia republicana tem o
significado de “âncora”. Ela está no centro-norte geográfico do país, na sua
parte asiática, nem tão distante da antiga capital, Istambul. Esta, que por sua
vez era o antigo centro do Império Romano do Oriente, a eterna Constantinopla,
em 1453, renomeada para o seu atual nome, a partir de uma releitura do termo em
grego “eis tan polis”, “dentro da cidade”, quando o Império Seljúquida
conseguiu entrar lá, estabelecendo-se. Istambul é uma cidade que divide Ásia e
Europa. A Turquia é uma ponte que fica entre o Oriente Médio, a Rússia e seus
países satélites, e a União Europeia.
Ao mesmo tempo, este país é membro da OTAN, a
aliança militar liderada pelos EUA e países da Europa Ocidental. Por enquanto,
é candidato a entrar na União Europeia. É governado por um partido de raízes
islâmicas, o AKP, moderado, em comparação, por exemplo, com as diversas versões
das Irmandades Muçulmanas espalhadas pelo Oriente Médio afora. E, enfim, tem na
cabeça de seu governo, desde 2003, um mesmo Chefe, Recep Tayyip Erdogan,
ocupando o cargo de primeiro-ministro, ou então de presidente da república, em
situação semelhante à de Vladimir Putin na Rússia, apesar deste último
concentrar muito mais poderes para si em seu país.
Esses são apenas aspectos superficiais que nos
ajuda a compreender o quanto a Turquia vive em meio a pelo menos três
concepções diferentes de relações na Geopolítica Internacional. Vizinha que é,
principalmente, da Síria árabe sunita, da República Islâmica do Irã de maioria
xiita, da Grécia de maioria cristã Ortodoxa, como os turcos se afirmam?
Enquanto um país que adotou costumes ostensivamente ocidentalizados, tentando,
com sucesso parcial, nos últimos 90 anos banir toda e qualquer forma de símbolo
religioso islâmico em seus espaços públicos. Tendo no exército o guardião
da República, impedindo o avanço de governos à esquerda, liberais ou
religiosos, dependendo da época: 1960, 1971, 1980 e 1997, por meio de golpes
militares. Não eram golpes que interrompessem de vez a vida
político-partidária: eles recondicionavam a sociedade civil ao Estado, fundado
por Mustafá Kemal, o Ataturk (Pai dos turcos), em 1924. Foi quando a Turquia
definiu, na fundação de sua república, uma série de pontos que a distinguiu de
seus vizinhos. O Estado confessional (o islã como religião oficial), mas
secular (hábitos religiosos desautorizados). O alfabeto árabe substituído pelo
latino. A sharia (lei religiosa) pela lei civil.
A crise que eclodiu nos últimos dias está
diretamente relacionada a esses fatores históricos e culturais. Mas também à
vocação de a Turquia ter que sustentar seu papel de ponte entre diversas
identidades distintas. De tempos em tempos, sociedade civil, religião e Estado
sofrem a tensão que é a interrogação que a Turquia leva consigo: serão capazes
de se sustentarem enquanto ponte? Ou optarão por uma grande muralha que poderá
os isolar para um futuro mais próximo?
Fábio Metzger
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