Para falar dos últimos acontecimentos envolvendo o
ministro Gilmar Mendes, proponho aqui um exercício: imaginarmos o magistrado
analisando a própria conduta a partir da sua formação jurídica. Vamos lembrar
que, nos anos de 1980, o país vivia uma série de transformações provocadas pelo
fim do regime militar, a população pedia eleições diretas nas ruas, Tancredo
Neves era eleito indiretamente presidente pelo Congresso Nacional, o vice José
Sarney assumia depois do falecimento de Tancredo, e a nova Constituição Federal
era elaborada para finalmente concretizar os princípios republicanos e
democráticos que orientavam os países europeus desde a Segunda Guerra Mundial.
Todas as transformações certamente estavam ligadas
aos desejos de mudança do então jovem Gilmar Mendes, que havia se formado em
1978 na Universidade de Brasília (UnB), fazia seu doutorado na Alemanha nos
anos 80 e já ocupava, desde 1984, o cargo de procurador da República.
Imaginando que ele próprio fizesse um retrospecto de suas convicções jurídicas
e fantasiando que fosse outro o ministro acusado por crime de responsabilidade,
Gilmar Mendes certamente exigiria uma postura republicana firme contra ações
que afrontassem o bom funcionamento dos poderes do Estado e da Constituição de
1988.
Então, vamos aos fatos: o ex-procurador-geral da
República Cláudio Fonteles apresentou, na última quarta-feira, dia 14, pedido
de impeachment contra o ministro do Supremo Tribunal Federal por crime de
responsabilidade praticado.
O fundamento do pedido é o diálogo desse ministro
do Supremo com um senador. A fala, gravada pela Polícia Federal, mostra o
parlamentar pedindo para o ministro ligar e orientar um senador a votar no
projeto de lei que regula o abuso de autoridade. O magistrado responde que já
conversou no mesmo sentido com outros dois senadores. Fonteles afirma
contundentemente: “ele [o ministro Gilmar Mendes] não só se apressa a dizer a
seu interlocutor que assumira a postura [de conversar com um senador] como que
já providenciava contatos com dois outros senadores da República”. Para
Fonteles, “isso é um clímax: é a hora histórica de brasileiros e brasileiras
passarem o país a limpo”. O ex-procurador-geral conclui dizendo que o ministro
está “concreta e objetivamente” desenvolvendo “política partidária”, de forma a
caracterizar crime de responsabilidade.
Se fosse Gilmar Mendes a analisar os fatos do ponto
de vista estritamente técnico, concordaria com essas declarações e ainda
recordaria de algumas passagens nebulosas envolvendo este mesmo ministro do
Supremo, que no caso é ele próprio. A primeira: o magistrado é sócio do
Instituto de Direito Público. A entidade recebeu mais de R$ 2 milhões do frigorífico JBS, empresa que tem um modus
operandi criminoso no país e fez acordo de delação denunciando o presidente
da República. O segundo momento ocorreu quando o ministro fez a (no mínimo)
polêmica declaração de que “o cemitério está cheio desses heróis”, direcionada
aos membros do Ministério Público que investigavam atos de corrupção em
estatais. O terceiro momento veio no julgamento da cassação da chapa do
presidente da República, Michel Temer, por abuso de poder econômico e político.
A decisão do ministro pela não cassação contrariou todas as provas produzidas,
que detalhavam os crimes de abuso cometidos durante o processo eleitoral.
O áudio apresentado pela Polícia Federal apontava
provas irrefutáveis de que o magistrado praticou atividades no campo
político-partidário que passam ao largo das atividades típicas da sua função. A
separação dos poderes e o funcionamento independente e harmônico do Executivo,
Legislativo e Judiciário são claras na Constituição Federal e são a base do
Estado Democrático de Direito (artigos 1.º e 2.º da Constituição). A
sobreposição de ações anula e vicia o correto funcionamento institucional pela
quebra básica da organização dos poderes (Título IV da Constituição). Nesse
sentido, é inconcebível, no funcionamento regular de uma república, que o
magistrado tome decisões políticas como parlamentar.
O impeachment é a medida extrema a ser tomada pelo
Congresso Nacional contra o ministro do Supremo Tribunal Federal (inciso II do
artigo 52 da Constituição Federal). É provável que o próprio jovem Gilmar
Mendes defenderia que o afastamento definitivo do magistrado pelo crime de
responsabilidade cometido é o único caminho possível para recompor a
credibilidade do Judiciário.
Pensaria novamente: são novos tempos que exigem
sacrifícios institucionais.
Ao se encarar no espelho, o velho Gilmar Mendes
certamente desconheceria o seu passado, sua produção acadêmica e o espírito
público que possivelmente já o motivou. Os olhos opacos de Gilmar Mendes deixam
suas ações obscuras à luz dos princípios republicanos e democráticos que guiam
a Constituição Federal de 1988 no século 21.
Eduardo Faria Silva - coordenador da graduação em
Direito e da Pós-Graduação em Direito Constitucional e Democracia da
Universidade Positivo (UP).
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