Segundo
o dicionário Houaiss, o termo omissão apresenta como um de seus significados
não fazer algo que moral ou juridicamente se deveria fazer, resultando (ou
podendo resultar) prejuízo para terceiros ou para a sociedade. No Direito, a
omissão é um ilícito que traz a penalização como consequência, na esfera cível,
penal e administrativa.
Todos têm um dever de assistência e solidariedade para com o
próximo, motivo pelo qual, ao não socorrer alguém, pratica-se o delito de
omissão de socorro (Código Penal, art. 135).
Para determinado grupo de pessoas, contudo, há um dever legal ou
contratual de cuidado, proteção ou vigilância. Caso não se adotem medidas para
impedir o resultado, não responderão pelo delito de omissão de socorro, mas sim
pelo resultado. Nesse sentido, se uma criança está se afogando e um transeunte
não a ajuda, praticará o crime de omissão de socorro. Se for seu pai, um
policial ou um bombeiro, um crime de lesão corporal; ou, em caso de morte, um
homicídio (doloso ou culposo, conforme caso concreto).
Portanto, ao assumir um plantão, por exemplo, o médico tem a
obrigação de adotar medidas em prol do paciente, ainda que discorde do
atendimento anterior de seu colega, sob pena de sua responsabilização. Caso o
médico tenha à frente de sua clínica uma pessoa que foi atropelada e precisa de
assistência, surge este dever de o profissional agir. Se nada faz por entender
que a obrigação do atendimento seria do serviço público de emergência, poderá
ser responsabilizado pelo resultado morte ou lesão corporal.
Um caso recente trouxe à tona uma discussão que implica em
possível responsabilização cível, criminal e ética do profissional médico. A
médica Haydee Marques da Silva foi acusada por não prestar assistência a um
menino de um ano e seis meses, após atender a um chamado, já estando frente a
um condomínio, por alegar que não atendia criança, que já havia uma enfermeira
no local e que não atende criança.
A médica não viu o paciente, não o examinou e, talvez, com sua
experiência profissional, pudesse ter resolvido rapidamente o caso que se
tratava (soube-se depois) de uma broncoaspiração. Ou, por não ser pediatra ou
especialista, poderia ter tomado os cuidados necessários para que tal criança
chegasse estável ao pronto atendimento de um hospital. Ou talvez a médica
tivesse examinado o paciente e ele logo fosse a óbito também.
O resultado para esse paciente poderia ser o mesmo – entretanto,
como saber?
Não se pode julgar previamente a profissional. No entanto, os
fatos apresentados pela mídia, se verdadeiros, causam certa perplexidade.
Imprescindível será ouvir as partes e se conhecer as razões que levaram a médica
a sequer ver o paciente.
O Ministério da Saúde claramente dispõe, pela Portaria nº 354/14,
sobre a definição de emergência como a “constatação médica de condições de
agravo a saúde que impliquem sofrimento intenso ou risco iminente de morte,
exigindo, portanto, tratamento médico imediato”.
Quanto à urgência, é a de “ocorrência imprevista de agravo a saúde
como ou sem risco potencial a vida, cujo portador necessita de assistência
médica imediata”.
Como saberá o profissional de saúde se o caso concreto traz ou não
o risco de morte, senão examinando o paciente?
O Código de Ética Médica apresenta as diretrizes para um médico
exercer sua profissão e propõe a penalização daqueles que não seguem seus
princípios. Nessa seara da obrigação de atender, encontram-se alguns preceitos,
como “deixar de atender paciente que procure seus cuidados profissionais em
casos de urgência ou emergência, quando não haja outro médico ou serviço médico
em condições de fazê-lo” (art. 33).
Esse tema da omissão aparece em repetidos artigos, no Capítulo que
versa sobre a “Relação com Pacientes e familiares”, tais como os artigos 7º, 8º
e 9º do Capítulo da “Responsabilidade do profissional”, os quais deixam
expresso ser falta ética o médico, em qualquer circunstância, deixar de atender
o paciente em casos de urgência ou emergência ou deixar plantão sem que haja
outro profissional para substituí-lo.
Interessante lembrar que, há pouco tempo, foi incluído no Código
Penal o art. 135-A, criado pelo Legislativo e sancionado pela presidente Dilma,
a partir de um evento que envolveu o secretário de Recursos Humanos do governo
federal, Duvanier Pereira, que teria passado por três hospitais sem que
houvesse sido atendido. Passou-se a considerar omissão de socorro a exigência
de qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários
administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar
emergencial. O que, embora saia da alçada da responsabilidade do médico,
poderia trazer a ele sequelas caso a instituição tivesse essa política e ele
não agisse em prol do paciente.
No entanto, muitos pacientes em estado grave, ainda que atendidos,
deixam de ter o tratamento de que precisam, sem que se possa responsabilizar o
médico, que se vê em uma situação de escolha entre pacientes, em razão de
problemas relacionados à estrutura, falta de leitos na UTI, falta de
equipamentos e falta de especialistas.
Nessa lógica, a União, o Estado e os Municípios seriam civilmente
responsáveis por várias omissões de socorro, ao não cumprirem sua obrigação
constitucional de oferecer uma estrutura de saúde digna. Por exemplo, a omissão
de socorro por falta de vagas na UTI ocorre diariamente, em silêncio.
Alguns casos apresentados pela mídia chamaram atenção da
sociedade. Em 2016, o Ministério Público Federal informou que um levantamento
realizado em Bauru indicava que 580 mortes teriam ocorrido por falta de vagas
no SUS, entre janeiro de 2009 e junho de 2013. Os pacientes deram entrada no
Pronto-Socorro Central e acabaram morrendo pela falta de remoção para leitos ou
mesmo por não serem atendidos a tempo. Para o MPF, que instaurou inquérito
civil para apurar responsabilidade, ocorreram crimes de homicídio culposo,
omissão de socorro e maus-tratos por parte do poder público contra os pacientes
do SUS. A mesma situação já foi denunciada em Goiânia, no Mato Grosso e outras
localidades.
Se considerados os constantes desvios de verbas ocorridos na área
de saúde, será possível concluir que muitos políticos, gestores e fornecedores
do SUS também deveriam ser responsabilizados pela ausência de cuidados aos
pacientes e pela omissão de socorro. Não é necessário apontar que a falta de
leitos está relacionada à ausência de recursos e da má administração do dinheiro
público.
Ou seja, trata-se de um problema sistêmico e não apenas de uma
médica isoladamente. Assim, cabe a todos nesse momento a reflexão a respeito do
cenário que envolve a omissão de socorro. Não se pode deixar de punir o agente
deste ato criminoso, qualquer que seja ele, quando o bem maior garantido pela
Constituição é posto em risco: a vida.
Sandra Franco - consultora jurídica especializada em Direito Médico e da
Saúde, presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde,
presidente da Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico-Hospitalar
da OAB de São José dos Campos (SP), membro do Comitê de Ética da UNESP para
pesquisa em seres humanos e Doutoranda em Saúde Pública.
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