Os romanos edificaram o direito e não se esqueceram das
saídas de emergência para os juízes, integrantes do patriciado. Distinguiram,
assim, duas espécies de possíveis erros dos juízes: "error in
procedendo" e "error in judiciando". Em bom português: erro
de procedimento e erro ao aplicar o direito. Com consequências completamente
diversas: o erro de procedimento é a má condução do processo, a inversão de seu
caminho natural, a negligência em seu impulso, não raro conduzente à estagnação
de seu andamento, em detrimento do interessado. Já o erro de julgamento implica
no ponto de vista do juiz, absoluto em sua autonomia, ainda que o entendimento
do direito aplicável beire o estremecedoramente herético e despropositado.
O erro de procedimento permite a intervenção da
respectiva Corregedoria ou do Conselho Nacional de Justiça, com consequências
nada agradáveis para os magistrados; já os erros no modo de compreender o
direito e aplicar a lei são procedimentos absolutamente respeitados
e as derrapagens permanecem incólumes.
Assim, diz-se, fica garantida
a convicção intocável do juiz ao interpretar e aplicar a lei. Valor
democrático, republicano. Se equivocada a decisão, o inconformado dispõe de uma
gama de recursos para modificar a decisão desencontrada dos princípios da
ciência do direito. É esdrúxulo pensar-se em punir um juiz por suas
posições. Desse modo fluem as coisas da Justiça, desde eras priscas.
Mas, nem sempre: o Código de Hamurabi punia o juiz equivocado, inclusive com
penalidades extremamente graves. Foi superado o controle da administração do
direito no curso civilizatório.
Não faz mal, porém, um pouco de saudade do código da
sexta dinastia babilônica. Merece o cidadão, em reverência servil aos juizes,
suportar às costas uma decisão juridicamente monstruosa? Na prática processual
o adjetivo "monstruoso" é paliativamente substituído por
"teratológico", que, como é óbvio, provém de "teratologia",
que é o estudo das monstruosidades e, não, as mostruosidades. No entanto,
deixemos de barato a semântica incorreta para classificar um ato incorreto.
Vamos a um exemplo curial. Um juiz negligente, com a
devida ressalva e respeito aos dedicados homens cultos e de bem que são
exemplos de virtuosismo no apararato judiciário, vê-se apertado por não
julgar ou sequer processar, amiúde ao longo de anos, uma causa, de nenhuma
importância para ele, mas que pode determinar o sonho intranquilo das partes em
todas as noites. Para fugir de sua responsabilidade, emite um sentença
qualquer, ainda que monstruosa sob o aspecto da legalidade, da doutrina e
da jurisprudência. Está salvo e volta a dormir
o sono dos justos. A parte vencida que recorra, recolha as custas do
recurso, conte com um advogado devidamente preparado para sustentá-lo e aprenda
a dormir com o diabo até o julgamento de segunda instância ou, ainda, das superiores.
Se ao final, o inicialmente vencido for vencedor, certamente atravessou vários
anos de sua vida num lodaçal fétido de abominável falta de qualidade de vida.
Esses anos perdidos, porém, nada significam para a espessura epidérmica de
espinhos dessas figuras indignas do Judiciário. Talvez incomodassem a
sensibilidade de Proust.
Conclui-se que, se o juiz proferiu um pronunciamento
deformado, mas decidiu o caso e escapou de censura, bem caracterizada a
ignomínia, que não é difícil de ser apurada pela experiência dos juízes
corregedores, não deveria escapar dos efeitos do erro de
procedimento. A decisão inconsequente, errônea, lamentável não poderia passar em branco. Causou um prejuízo
ao ser humano ou a um grupo que dela dependia e é princípio elementar de
direito que todo aquele que provoca um dano deve repará-lo.
Não pensem que falamos de uma tempestade rara. Essa
modalidade de fazer errado, mas fazer, muitas vezes conscientemente, é um ato
corriqueiro em nosso Judiciário, sobretudo depois do advento do Conselho
Nacional de Justiça. Este, pressionado, principalmente pelo Supremo Tribunal
Federal, firmou o entendimento de que não pode se intrometer em erros de
julgamento. E, desse modo, ficou legitimada a prática fugidia dos maus juízes.
Esquecemo-nos de que a conduta pedestre e inconsequente
de juízes, voltando ao Código de Hamurabi, era considerado algo tão grave que,
em certas hipóteses, a punição era a morte.
Amadeu Garrido
de Paula - advogado especialista em Direito Constitucional, Civil, Tributário
e Coletivo do Trabalho
Nenhum comentário:
Postar um comentário