O ano era 1990. O capitalismo avançava em todos os continentes e abria as portas para a globalização; a Alemanha foi reunificada, com a queda do Muro de Berlim; Nelson Mandella foi libertado e deu-se início ao fim do Apartheid; a Segunda Guerra do Golfo eclodiu, com a invasão do Kuwait pelo Iraque, trazendo a ameaça de desestabilizar a economia mundial em decorrência da alta do petróleo; Michail Gorbatchev ganhou o Prêmio Nobel da Paz e a Alemanha sagrou-se campeã do mundo, em Roma.
No Brasil, a economia amargava uma de suas maiores crises, chegando à hiperinflação; a democracia revivia, com a eleição do primeiro presidente da República civil após 29 anos; o País mostrava fôlego político para embarcar na globalização; comemoramos o bicampeonato de Ayrton Senna e choramos a derrota de Cazuza em sua batalha contra a Aids, epidemia que assustava o mundo, e com a desclassificação da Seleção Brasileira na Copa do Mundo para a Argentina. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi sancionado.
De lá para cá – 32 anos depois – os personagens mudaram, os fatos foram renomeados, mas ainda vivemos conflitos armados que ameaçam a segurança alimentar e a paz mundial; uma pandemia dizimou quase 20 milhões de vidas em todo o planeta; a inflação global preocupa; o momento pré-eleitoral é tenso e a Copa do Mundo vem aí.
E o CDC? Nessas mais de três décadas ele disse a que
veio. Popularmente reconhecido como “a lei que mais pegou”, ele cumpriu
seu papel nesse período e estabeleceu novos parâmetros para as relações de
consumo no Brasil. É uma das leis mais conhecidas, que deu voz aos consumidores
e, consequentemente, otimizou o negócio das empresas, que se tornaram ainda
mais centradas em seus clientes.
Sim, o CDC foi um verdadeiro professor e mostrou às organizações como fazer o dever de casa. O resultado foi que, com ou sem crises econômicas, políticas ou sanitárias, ele foi se firmando e trazendo luz às relações de consumo no Brasil. Nesse período, a legislação brasileira proporcionou importantes reforços ao CDC, como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que chegou para garantir a preservação da privacidade das informações pessoais. Grande contribuição e alívio para os consumidores. Torcemos para que a LGPD também se torne “uma lei que pegou” e que os atuais vazamentos de dados e suas ameaças com o tempo sejam mitigados.
Outra lei muito bem-vinda foi a de número 14.181/2021 que representa um marco importantíssimo na história das relações consumeristas e do próprio CDC. Tão relevante, que ela atualizou o CDC, permitindo uma análise mais aprofundada e humana das possíveis razões que geram inadimplência. Por isso mesmo ficou conhecida como a Lei do Superendividamento.
Mais do que tudo ela é necessária: hoje, temos 77,3% de famílias endividadas e aproximadamente 44 milhões de brasileiros superendividados. Esses dados alarmantes foram divulgados pela Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor, realizada em junho deste ano pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo.
Mas o que caracteriza o superendividamento? O CDC o define como “a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação” (definição legal do § 1º do artigo 54-A).
A partir da Lei do Superendividamento desenhou-se um novo
cenário que pretende trazer mais clareza e oportunidades para quem deve e
àqueles que precisam receber. Entre as medidas previstas se destacam mais
conscientização sobre gastos, ênfase na educação financeira, condições justas
para a contratação de crédito, fim do assédio ao cliente e mais suporte ao
consumidor. Ela também protege o mínimo existencial dos consumidores que se
encaixam neste perfil.
Contudo, como sempre nem tudo são flores e até mesmo o CDC enfrenta alguns dissabores impostos por novas normas, em julho deste ano foi publicado o Decreto nº 11.150/22, que determinou o valor desse mínimo existencial e deixou muitos questionamentos jurídicos e sociais. Ao negociar dívidas, os bancos e as financeiras devem assegurar que o cidadão tenha 25% do salário mínimo garantido para sua subsistência, o que representa algo em torno de R$ 303,00, uma vez que o salário mínimo vigente é R$ 1.212,00.
O questionamento está justamente aí. O valor protegido para garantir o conjunto básico de direitos fundamentais para a dignidade da pessoa, com moradia, alimentação, saúde, educação e lazer é o mínimo do mínimo para sua subsistência. Neste ponto é perceptível que se abriu um distanciamento e um novo desafio para sua aplicabilidade.
Sua essência é colaborativa para quem tem dívidas a pagar e fundamental para o empresário que precisa receber. Como seria possível aplicá-la, uma vez que sabemos que esse cenário de superendividamento engloba as pessoas com mais vulnerabilidade social e que, muitas vezes, mal recebem um salário mínimo?
A Comissão de Defesa do Consumidor da OAB-SP, da qual sou vice-presidente, entende que esse valor ofende, de partida, o artigo 4º do CDC, que outorga à Política Nacional das Relações de Consumo o objetivo de “atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo”. E eu faço coro a esse posicionamento.
Enxergamos que um número expressivo de cidadãos brasileiros superendividados ficará à margem da proteção legal. E para além de toda essa análise e compreensão da situação econômico-social do País há outro ponto que merece ser levantando: perdemos aqui o princípio de harmonia das relações de consumo e toda a sociedade será impactada por essa realidade que se configura a partir do Decreto nº 11.150/22.
Neste 11 de setembro, quando serão completados 32 anos da sanção do CDC, debates sociais precisam ser os protagonistas deste marco. Se em 2021 ganhamos com as possibilidades que a Lei do Superendividamento proporcionou para a harmonia das relações de consumo, em 2022 amargamos a edição de um decreto que desrespeita seu princípio fundamental de garantir a dignidade humana.
Vamos repensar juntos. Sem relações de consumo
equilibradas, não há estabilidade em nosso modelo econômico. E sem consumidor
não se tem consumo. Que as leis neste contexto atendam todos os setores da
economia, o que inclui o mercado e os cidadãos. Sem isso não é possível haver
equilíbrio social e econômico. Que os princípios do CDC prevaleçam em prol da
dignidade humana e do fortalecimento da ordem econômica.
Ellen Gonçalves
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