Autora de "Tempos compulsivos", Sandra Edler analisa o impacto psíquico da Covid-19
Com mais de 40 milhões de casos
confirmados, a pandemia da Covid-19 mudou as relações e a maneira de ver o
mundo. Mas, além do medo e da ansiedade, a doença jogou luz em questões que
estavam nas sombras, avalia a psicanalista Sandra Edler, autora do livro
"Tempos compulsivos".
"Muitos ganharam uma pausa para sair das atividades automáticas e refletir
sobre suas questões. Tanto assim que, de maneira geral, cresceu a demanda por
análise. Há mais pessoas interessadas em cuidar de si", diz.
Apesar do aumento de casos de excesso de consumo de bebidas alcoólicas e drogas
como válvulas de escape para as angústias trazidas pelo novo Coronavírus, as
restrições impostas pelo isolamento vêm reafirmar a importância do agora:
"A pandemia reforçou a ideia de que a vida pode ser vista como uma
travessia. Ela se dá no durante, nem no início nem no fim".
Sandra Edler dará um curso online na Casa do Saber Rio, em novembro, com o tema
"Tempos compulsivos: o que mudou com a pandemia?". A seguir, ela
analisa alterações psíquicas provocadas pelo momento atual. Confira:
A pandemia de Covid-19 e seus efeitos imediatos, como o isolamento social e
o home office, deixaram a humanidade mais tensa, ansiosa e triste. Esse
processo é reversível ou estamos condenados a viver sob nuvens carregadas?
O isolamento social, as perdas e as restrições impostas pelo novo contexto
pandêmico ampliaram depressões, angústias, crises de pânico, insegurança e
medo. Estamos diante de um vírus desconhecido, sem conhecimento de seu
comportamento, duração e consequências. E ainda temos muitas perguntas sem
respostas e sem uma definição clara do amanhã. Mas quanto ao isolamento, se por
um lado suprimiu artifícios, por outro potencializou a criatividade e logo
começou um movimento de tentativa de adaptação. As famílias se aproximaram,
muitas mães voltaram a estudar com os filhos. Houve avanço para muitas pessoas.
No entanto, somos seres em conflito e a pandemia trouxe novos problemas e
reacendeu antigos.
Há quem acredite que este momento é fundamental para nos conhecermos melhor,
encarar o que a falta de tempo do cotidiano não nos deixava ver. O que há de
verdade e de importante nisso?
Para nós psicanalistas, nunca nos conheceremos completamente porque não
dispomos apenas da consciência. Temos uma dimensão inconsciente que vai se
revelando por sonhos, sintomas, atos falhos, equívocos... E que, vez por outra,
nos surpreende. Mas não há dúvida de que muitos ganharam com a pandemia uma
pausa para sair das atividades automáticas e em série, e refletir sobre suas
questões. Tanto assim que, de maneira geral, cresceu a demanda por análise e a
clínica on-line mostrou-se promissora. Há muitas pessoas interessadas em cuidar
de si. Nesse sentido, é uma excelente oportunidade.
Inúmeras pessoas reforçaram o uso de bebidas alcoólicas, remédios e cigarros
como válvula de escape para os atuais tempos sombrios. Isso é, de fato,
compreensível, e se justifica?
Existem pessoas que, privadas de seus escapes habituais, e, com mais tempo em
casa, ampliaram o uso de álcool e substâncias como válvula de escape. Sem
esquecer o tempo de permanência na internet. Cresceu muito o número de
compulsivos digitais com lamentáveis consequências. Toda compulsão preocupa
porque tolhe ainda mais a já restrita liberdade do sujeito. Além disso, o uso
de substâncias tóxicas, a ingestão excessiva de alimentos e outros, podem
ocasionar prejuízos ao organismo como um todo.
As compulsões podem começar na busca pelo prazer ou como uma forma de
"automedicação", compensando incômodos da vida, amortecendo
preocupações, como disse Freud, encobrindo depressões e angústia, por exemplo.
Mas o que foi inicialmente a busca pelo prazer ou algo ocasional pode tornar-se
necessário para continuar a viver. E enreda o sujeito nesse "ritual
íntimo" a ponto de paralisá-lo para outras atividades e deixa-lo refém.
Detalho isso no livro "Tempos Compulsivos", inclusive através de
relatos de dependentes e outros que passaram por isso e agora estão sob
controle.
Com a Covid-19 e a falta de prazo para a distribuição da vacina a nível
global, vivemos um longo período de incertezas. A vida é risco, mas nunca foi
tão arriscado viver. Como sobreviver a isso?
Sim, vivemos um período de incertezas e a vida implica risco permanente. Mas
estamos sempre querendo chegar a algum lugar. Envolvidos em múltiplas
atividades, focados em chegadas e partidas, em busca de algo e querendo atingir
um porto seguro. A pandemia, o isolamento e as restrições vieram revelar um
outro lado. O de que a vida pode ser vista também como uma travessia, mais
curta, mais longa, mas dentro da ideia de que a vida se dá no
"durante". Nem no início nem no fim do túnel, mas na própria
travessia. É compreensível e humano querer chegar ao fim desse longo túnel, mas
temos que viver essa e muitas outras travessias, veredas, estradas vicinais.
Não por acaso, tantas pessoas se põem a caminhar em longas trilhas de
peregrinação...
Futuristas dizem que a pandemia funciona como um acelerador do tempo e que
ela antecipa mudanças que já estavam em curso, como o trabalho remoto e a
educação à distância. Isso, do ponto de vista prático. Mas o que realmente
importa, é: quando tudo passar, como estaremos, quem seremos?
Acredito que a ampliação do território digital, da ação dos algoritmos, do
ensino on-line, do domínio da tecnologia se mantenham em expansão, mas temo
pelo fator humano, presencial, cujo decréscimo traz consequências muito
danosas. Inútil vermos apenas pelo lado econômico de redução de custos, por
exemplo. Ou deslumbrar-se com a sedução da tecnologia.
Se não mantivermos a presença humana, social, o estímulo da presença do outro
como laço e como referência, o que será de nossa vida emocional e de nossa
humanização? Devemos legar ao algoritmo, à inteligência artificial, a
possibilidade de decidir, de escolher por nós? Vamos abrir mão de nossa
capacidade crítica? Vamos consentir em fazer parte do imenso rebanho de
domesticados por uma ferramenta que criamos? À mercê de interesses econômicos?
Então, para concluir, destaco a ideia de que a pandemia trouxe um foco de luz
para muita coisa que não víamos em nossas vidas, em nossa intimidade, nos
hábitos que cultivamos, na forma de educar os filhos, na escolha dos caminhos.
A grande trilha das questões existenciais e humanas está em foco agora, mais do
que nunca! E a viagem apenas começando...
Qual a proposta do curso online que a senhora ministrará na Casa do Saber
Rio?
No livro "Tempos compulsivos", publicado em 2017, mostro um estudo
sobre as compulsões. Tanto as ligadas a alimentos, álcool e/ou substâncias,
quanto aos hábitos que se tornam repetitivos. Elas estavam em crescimento e
algumas aumentaram com o isolamento social. A pandemia nos legou um olhar mais
apurado. Precisamos revê-las, no conjunto da nossa intimidade, sob esse novo
olhar.
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