Uma sociedade entre a salvação e o engodo
As
manifestações populares do último domingo (15), denunciam o mal-estar que acomete
a sociedade brasileira e parece apontar para uma única causa: o desgoverno. Não
é por outro motivo que a palavra de ordem mais ouvida foi “fora Dilma!”. De
fato, vencedora em uma disputa eleitoral acirrada como há muito tempo não se
via, a presidente cometeu o crime de, após eleita, agir em sentido contrário ao
que anunciou durante a campanha, parecendo seguir a máxima maquiaveliana de
dizer o que o povo quer ouvir, mas fazer o que for necessário quando no
governo.
Em
certo sentido, é compreensível a manifestação popular tendo como foco exclusivo
a presidente e o seu partido. O PT, que emplacou o quarto mandato consecutivo
no governo, fez fortuna na oposição. Sua marca principal foi a denúncia do
patrimonialismo e a defesa da cidadania, sobretudo, dos interesses ligados ao
chamado Brasil moderno, urbano e industrial. No poder, entretanto, se ligou ao
atraso e fez pacto com o estamento político tradicional, frustrando a
possibilidade de ruptura acalentada com a vitória do primeiro Lula.
O
denunciante dos “trezentos picaretas com anel de doutor” soube construir as
condições para governar acomodando interesses arcaicos e modernos, num jogo de
cooptações em que o novo ficou hipotecado ao que deveria negar. Assim, longe de
realizar a ruptura prometida, Lula e o seu partido aprofundaram a privatização
do público e a degeneração da ordem republicana, marcada entre nós por sua
secular fragilidade.
É
óbvio que Lula e o PT, apesar de se articularem com estamento político
tradicional, não deixaram de lado a interlocução com os setores subalternos.
Estes foram beneficiados, de fato, com políticas redistributivas que garantiram
o acesso de muitos de seus membros ao universo do consumo. Num certo sentido, a
lógica patrimonialista encontrou em Lula o personagem ideal para encarná-la, o
que nos remete a Raymundo Faoro, quando lembra, em “Os Donos do Poder”, o
conselho de Alvaro Paez ao Mestre de Avis: “Senhor, fazei por esta guisa: Dai
aquilo que vosso não é, e prometei o que não tendes, e perdoai a quem vos não
errou, e ser-vos-á mui grande ajuda para tal negócio que sois posto”.
Ao
se render à lógica patrimonialista, o PT optou por um caminho inconciliável com
a sua condição de ator do moderno e se tornou mais um elo de nossa corrompida
tradição republicana, segundo a qual o poder tem dono e este não é o povo do
Estado. É compreensível, assim, que hoje, com Dilma à frente do governo,
colha a insatisfação popular. Nesta lógica em que joga o jogo, o Partido dos
Trabalhadores convive com a necessidade de satisfazer parceiros de estamento e
remediar o sofrimento dos “de baixo”, coisa difícil em uma conjuntura de crise
econômica e apetites vorazes.
Em
se tratando da voracidade dos apetites é que podemos afirmar que Dilma e o PT
catalisam algo maior do que o descontentamento popular com o governo e o
partido. Nessa sociedade da informação, fragmentada em múltiplos interesses,
faltaram lideranças verdadeiramente republicanas capazes de articular um
projeto de destino comum. Tudo o que foi feito nos últimos anos se resumiu ao
estímulo do consumismo desenfreado, sem vínculo com qualquer utopia
unificadora. Neste paraíso utilitarista, em que o governo e as próprias
lideranças sociais permitiram que se resumisse a noção de sucesso de um
governo, a apatia política desagua na confusão de palavras de ordem - no “nós
contra eles” - e no terreno perigoso dos mitos totalitários. Afinal, numa
sociedade de consumidores, a solidariedade e a felicidade humanas passam longe
da grande política e do seu tempo particular. O que se busca é a salvação. E
essa sempre degenera em engodo. Vide a viagem redonda do PT.
Os
próximos dias dirão para onde vamos.
Rogerio Baptistini - sociólogo e professor da
Universidade Presbiteriana Mackenzie.
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