segunda-feira, 16 de março de 2015

Para onde vamos?




Uma sociedade entre a salvação e o engodo

As manifestações populares do último domingo (15), denunciam o mal-estar que acomete a sociedade brasileira e parece apontar para uma única causa: o desgoverno. Não é por outro motivo que a palavra de ordem mais ouvida foi “fora Dilma!”. De fato, vencedora em uma disputa eleitoral acirrada como há muito tempo não se via, a presidente cometeu o crime de, após eleita, agir em sentido contrário ao que anunciou durante a campanha, parecendo seguir a máxima maquiaveliana de dizer o que o povo quer ouvir, mas fazer o que for necessário quando no governo.
Em certo sentido, é compreensível a manifestação popular tendo como foco exclusivo a presidente e o seu partido. O PT, que emplacou o quarto mandato consecutivo no governo, fez fortuna na oposição. Sua marca principal foi a denúncia do patrimonialismo e a defesa da cidadania, sobretudo, dos interesses ligados ao chamado Brasil moderno, urbano e industrial. No poder, entretanto, se ligou ao atraso e fez pacto com o estamento político tradicional, frustrando a possibilidade de ruptura acalentada com a vitória do primeiro Lula.
O denunciante dos “trezentos picaretas com anel de doutor” soube construir as condições para governar acomodando interesses arcaicos e modernos, num jogo de cooptações em que o novo ficou hipotecado ao que deveria negar. Assim, longe de realizar a ruptura prometida, Lula e o seu partido aprofundaram a privatização do público e a degeneração da ordem republicana, marcada entre nós por sua secular fragilidade.
É óbvio que Lula e o PT, apesar de se articularem com estamento político tradicional, não deixaram de lado a interlocução com os setores subalternos. Estes foram beneficiados, de fato, com políticas redistributivas que garantiram o acesso de muitos de seus membros ao universo do consumo. Num certo sentido, a lógica patrimonialista encontrou em Lula o personagem ideal para encarná-la, o que nos remete a Raymundo Faoro, quando lembra, em “Os Donos do Poder”, o conselho de Alvaro Paez ao Mestre de Avis: “Senhor, fazei por esta guisa: Dai aquilo que vosso não é, e prometei o que não tendes, e perdoai a quem vos não errou, e ser-vos-á mui grande ajuda para tal negócio que sois posto”.
Ao se render à lógica patrimonialista, o PT optou por um caminho inconciliável com a sua condição de ator do moderno e se tornou mais um elo de nossa corrompida tradição republicana, segundo a qual o poder tem dono e este não é o povo do Estado.  É compreensível, assim, que hoje, com Dilma à frente do governo, colha a insatisfação popular. Nesta lógica em que joga o jogo, o Partido dos Trabalhadores convive com a necessidade de satisfazer parceiros de estamento e remediar o sofrimento dos “de baixo”, coisa difícil em uma conjuntura de crise econômica e apetites vorazes.
Em se tratando da voracidade dos apetites é que podemos afirmar que Dilma e o PT catalisam algo maior do que o descontentamento popular com o governo e o partido. Nessa sociedade da informação, fragmentada em múltiplos interesses, faltaram lideranças verdadeiramente republicanas capazes de articular um projeto de destino comum. Tudo o que foi feito nos últimos anos se resumiu ao estímulo do consumismo desenfreado, sem vínculo com qualquer utopia unificadora.  Neste paraíso utilitarista, em que o governo e as próprias lideranças sociais permitiram que se resumisse a noção de sucesso de um governo, a apatia política desagua na confusão de palavras de ordem - no “nós contra eles” - e no terreno perigoso dos mitos totalitários. Afinal, numa sociedade de consumidores, a solidariedade e a felicidade humanas passam longe da grande política e do seu tempo particular. O que se busca é a salvação. E essa sempre degenera em engodo. Vide a viagem redonda do PT.
Os próximos dias dirão para onde vamos.


Rogerio Baptistini - sociólogo e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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