O poder torna as
pessoas estúpidas e muito poder, torna-as estupidíssimas. (R. Kurz)
O psicanalista J. Lacan [1] ,observou
que a partir do momento em que alguém se vê "rei", ele muda sua
personalidade. Um cidadão qualquer quando sobe ao poder [2] , altera seu
psiquismo. Seu olhar sobre os outros será diferente; admita ou não ele olhará
"de cima" os seus "governados", os "comandados",
os "coordenados", enfim, os demais.
Estar no poder, diz Lacan, "dá um sentido interiormente diferente
às suas paixões, aos seus desígnios, à sua estupidez mesmo". Pelo simples
fato de agora ser "rei", tudo deverá girar em função do que
representa a realeza. Também os "comandados" são levados pelas
circunstâncias a vê-lo como o "rei do pedaço".
La Boétie [3] parecia
indignado em perceber o quanto o lugar simbólico de poder faz o populacho se
oferecer a uma certa "servidão voluntária". Bourdieu chama-nos
atenção para a força que o símbolo exerce sobre os indivíduos e grupos. Antes
de ocupá-lo, o poder atrai e fascina; depois de ocupado tende a colar a alguns
como se lhes fossem eterno. Aí está a diferença entre um Fidel Castro e um
Nelson Mandela. O primeiro e a maioria dos ditadores pretendem se eternizar no
poder, o segundo, mais sábio, toma-o como transitório, evitando ser possuído
pelo próprio. ("Possuído", sim, pois o poder tem algo de diabólico,
que tenta, que corrompe, etc).
Uma vez no poder, o sujeito precisará de personas (máscaras)
e molduras de sobrevivência. A persona serve para enganar a
si e aos outros. A moldura, é algo necessário para delimitar simbolicamente a
ação dele enquanto representante do poder. A ausência de moldura ou o seu mau
uso fará irromper a força pulsional do sujeito que anseia por mais e mais
poder, podendo vir a se tornar uma patologia psíquica. A história coleciona
exemplos: Hitler, Stalin, Mobutu, Collor de Melo, Pol Pot, Idi Amim, etc.
No filme As loucuras do rei George III [4] , da
Inglaterra, somos levados a perceber duas coisas: o quanto que as
pessoas recusavam a idéia de um rei que perdeu a razão em função de uma doença
e, que fazer para impedir alguém que representa o poder máximo de uma nação,
devido a suas loucuras?
O poder faz fronteira com a loucura. Não é sem motivo que muitos
loucos se julgam Napoleão ou o Rei Luis XV. Parece que há algo de
"loucura narcísica" nas pessoas que anseiam chegar ao poder político
(governante de uma cidade, estado ou país, ministro, membro do secretariado
local), ou ao poder de uma instituição, empresa, departamento, pequeno setor de
uma organização qualquer ou grupo qualquer. O narcisismo de quem ocupa o poder,
revela-se na auto-admiração (o amor a si e aos seus feitos), na recusa em
aceitar o que vem dos outros e no gozo que ele extrai do poder, que, levado ao
extremo poderia revelar loucura. R. Kurz, é direto ao declarar que "o
poder torna as pessoas estúpidas e muito poder, torna-as estupidíssimas".
O sociólogo M. Tragtenberg certa vez observou como muitos
intelectuais discursam uma preocupação pelo "social", mas
estão mesmo preocupados com a sua "razão do
poder". Há uma espécie de "gozo louco" pelo poder, que faz
subir a cabeça dos que estão jogando para ganhá-lo um dia.
Do ponto de vista psicológico, observa-se que o poder faz o ocupante
perder a própria identidade pessoal e assumir outra, contornada pela
"fôrma" do próprio poder. Os cargos executivos (presidente,
governador, prefeito, diretor, reitor, etc), tem uma forma própria, um lugar que
marca uma certa diferença em quem a ocupa em relação aos cargos de segundo
escalão (ministros, secretários disso e daquilo, chefes de gabinetes,
assessores, etc). As "pequenas autoridades" dos escalões inferiores -
mas com algum poder - costumam ter atitudes mais protofascistas que
as grandes. São mais propensas a "vender sua alma ao diabo" que as
grandes para estar no poder.
O psicólogo Ricardo Vieira, da UERJ, de quem me inspirei para
continuar seu artigo, levanta os quatro primeiros indicadores
de mudanças que ocorrem com as pessoas que chegam ao
poder:
1) no modo de vestir: o terno, a gravata, o blazer e o
tailleur que, antes eram utilizados em circunstâncias especiais, passam a ser
usados cotidianamente, mesmo quando não é necessário utilizá-los. Alguns demonstram
certo constrangimento em trocar a surrada camiseta e passar a usar
um blazer ou uma camisa de linho, pelo menos nas ocasiões especiais. Se antes
usava um cabelo comprido, despenteado, logo é orientado a cortá-lo, penteá-lo,
dar um trato. Na última eleição para prefeito de Maringá, um candidato foi
orientado pelo seu marketeiro para mudar o cabelo enrolado por um penteado de
brilhantina. Perdeu a eleição.
2) mudam as relações pessoais: os antigos companheiros poderão
ser substituídos por novos, que o leva a sentir-se menos ameaçado. O sentimento
persecutório de "ser mal visto", precisa ser evitado a qualquer preço
por quem ocupa o poder.
3) altera o tratamento com o outro, que torna-se autoritário
com seus subordinados; gritos e ameaças passam a ser seu estilo. Certa vez,
perguntaram a Maquiavel se era melhor ser amado que temido? O autor de O
príncipe respondeu que "os dois mas se houver necessidade de
escolha, é melhor ser temido do que amado".
4) mudam os antigos apoios e alianças. Aqueles que o apoiaram
para chegar ao poder, transformam-se em arquivos vivos dos seus
defeitos. O poder leva a desidentificação com os antigos
colegas de profissão. É o caso do presidente FHC e do seu Ministro da Educação
Paulo Renato Souza, depois de executivos, ambos não se vêem mais professores.
5) Resistência em fazer auto-crítica. Antes, vivia criticando
tudo que era governo ou tudo que constituía como efeito de governo. Mas, logo
que passa a ocupar o poder, revela "sua outra face", não suportando a
mínima crítica. O poder os torna cegos e surdos a crítica. Uma pesquisa de
Pedro Demo, da Universidade de Brasília, constata que os profissionais de
academias apreciam criticar a tudo e a todos, mas são pouco eficazes na crítica
para consigo mesmos. Enquanto só teorizavam, nada resolviam, mas quando passam
a ocupar um cargo que exige ação prática, terá que testar a teoria; agora é que
"a prática se torna o critério da verdade" [5] . Por falta
de referencial e por excesso de idealismo, é freqüente ocorrerem bobagens e
repetições dos antigos adversários, tais como: fazer aumentos abusivos de
impostos, aplicar multas injustas, discursos cínicos para justificar um ato
imoral de abuso de poder, etc. Há um provérbio oriental que diz: "quem
vence dragões, também vira dragão".
Os sujeitos quando no poder protege-se da crítica reforçando pactos de
auto-engano com seus colegas de partido. Reforçam a crença de que representam o
Bem contra o Mal, recusam escutar o outro que lhe faz crítica e que poderia
norteá-lo para corrigir seus erros e ajudar a superar suas contradições. Se
entrincheirarem no grupo narcísico, o discurso político tornar-se-á dogmático,
duro, tapado, e podemos até prever qual será o seu futuro se tomar o caminho de
também eliminar os divergentes internos e fazer mais ações de governo contra o
povo, "em nome do povo".
Infelizmente assim é o poder: seduz, corrompe, decepciona e faz ponto
cego e surdo nos seus ocupantes temporários.
RAYMUNDO DE LIMA - Psicanalista e professor da UEM
[1] Jacques Lacan, psicanalista
francês, que propôs o retorno à leitura da obra de S. Freud.
Cf.: Seminário 1. Ed. Zahar, 1979, p. 318.
[2] Max Weber define
que o"poder é toda chance, seja ela qual for de impor a própria vontade
numa relação social, mesmo contar a relutância dos outros". Para M.
Foucault, nas duas obras, Vigiar e Punir e Microfísica do poder, faz
uma genealogia do poder. Constata que o poder se exerce na sociedade não apenas
através do Estado e das autoridades formalmente constituídas, mas de maneiras
as mais diversas, em uma multiplicidade de sentidos, em níveis distintos e
variados, muitas vezes sem nos darmos conta disso.
[3] Etienne La Boétie, filósofo
francês, autor do Discurso da Servidão Voluntária. Cf.: Brasiliense,
1982.
[4] O rei George III
reinou na Inglaterra no séc. 18 Ficou louco devido a uma doença, a porfiria,
desconhecida na época.
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