"Há muitos anos, percebi de repente que o país a que pertencemos não é, como quer a retórica mais corrente, o país que amamos, e sim aquele do qual nos envergonhamos."(Carlo Ginzburg)
"Ninguém morreu por ter apanhado na
infância", é frase corrente na boca de homens - e não raro mulheres - que
foram pais nos anos setenta, período no qual a violência institucional era
vendida como virtude. Aliás, não esqueçamos que já a bandeira nacional,
escolhida por um outro governo militar, adotou a frase do pensador positivista
Augusto Comte, mas tirou o “amor” da frase, porque era pouco másculo. Ficou só
“ordem e progresso”, depois rebatizado na ditadura por “segurança e
desenvolvimento” ou simplesmente pelo slogan “ame-o ou deixe-o”.
Nas casas de classe média, os pais que trabalhavam
para mal pagar as prestações da televisão colorida que ficava exposta na sala
como troféu pelo seu esforço em ser dedicado, viam os filhos rebeldes como um
sinal de falta de patriotismo e de fracasso da sua autoridade particular. E,
por isso, lições precisavam ser ensinadas. Não lição de amor, mas de obediência,
que era o nome certo daquilo que eles chamavam de respeito. “Precisa respeitar
pai e mãe, fazer o que eles mandam, porque eles sabem o que é melhor para
você". Considerando os pais que apoiavam um regime que matava e torturava,
saber o que era melhor para os filhos situava-se em um patamar que beirava o
surreal, embora fosse, na verdade, trágico.
E não havia com quem reclamar: o que eles faziam
era o que o pensamento no poder chamava de Educação, pra não virar vagabundo,
comunista, maconheiro. Todas essas palavras, faladas com asco, repulsão, como
um palavrão inominável, associavam-se com liberdade de escolha e
responsabilidade individual e eram negadas, porque isso desviava os jovens.
Para proteger os filhos desse perigo, usavam, se necessário, a violência
física. Para poder crescer e virar um adulto de bem, insistiam, enquanto o país
estava sob censura, o Congresso sendo fechado ao bel-prazer, as pessoas sumindo
nas esquinas, e as tenebrosas transações grassando longe dos olhos (dos pais
pagadores de impostos, sem nenhuma conta atrasada), como a árvore solitária que
cai no coração da floresta.
Nesse contexto devidamente justificado, apanhávamos
pelas mais diversas razões: porque éramos crianças agitadas; porque
respondíamos nossa mãe, porque não cumpríamos as tarefas que nos mandavam:
lembro-me, dez, onze anos, ia até o Atapu, uma panificadora que ficava cerca de
um quilômetro e meio de casa, beirando a rodovia expressa, comprar pão e leite,
todos os dias. Nunca me aconteceu nada, exceto o medo de criança. Medo de
ir e medo de voltar e ter esquecido algo, receber uns cascudos e voltar de
novo, mesmo que já tivesse escurecendo. Nada me acresceu essa experiência, não
trouxe maturidade nem resiliência. Como tudo o que marcou a infância dos que
apanhavam em casa, só trouxe medo.
Medo que era outro nome do respeito. Ter medo,
baixar a cabeça, não responder, não reclamar, não dar um pio, vá para o quarto,
vai perder o brinquedo, não vai sair por uma semana, e se fizer algo, apanha de
novo. Para aprender. Nunca aprendíamos. Temíamos e sonhávamos com o fim do
medo. Por isso a minha geração, no final dos anos setenta, início dos anos
oitenta, abraçou com tanta fé e esperança a abertura política, o adeus
melancólico dos militares, deixando o Planalto pela porta dos fundos, deixando
para trás um rastro de crise econômica, miséria social e ignorância
democrática. Mas com que fome avançamos para o pote da liberdade, querendo
aprender tudo de qualquer jeito, sem amadurecer nada, porque já havíamos
sofrido tanto.
Apanhei de cinta, de chinelo, de cabo de vassoura,
tapa na cara, cascudo, beliscão, puxão de cabelo, no banheiro, tentando me
esconder debaixo da cama e sendo puxado pelas pernas, na frente dos meus
colegas porque cheguei 10 minutos atrasado de um festa - eu com 15 anos - meu
pai na área esperando com o cinto. Às vezes ele chegava do trabalho, minha mãe
dizia que tínhamos feito alguma coisa e ele dizia que no dia seguinte iríamos
apanhar. Filosofava: não se pode bater com raiva que faz mal (para ele). A surra
tem de ter um motivo, era pedagógico. Por isso, ele perguntava: por que estão
apanhando? E nós assumíamos a culpa, confessando que tínhamos sido crianças,
tínhamos tido a curiosidade dos jovens, e assim tirávamos das costas de meu pai
a responsabilidade pelo castigo. E apanhávamos para aprender que ser criança e
ser adolescente era ser uma coisa muito perigosa.
Agora temos, novamente, um governo cheio de
militares, de discursos de pátria e de obediência. E um ministro da Educação
que defende a “disciplina da vara”. Queria só deixar o alerta, para os que não
viveram a experiência que a minha geração viveu. Apanhar só ensina uma coisa: a
ter medo. E o medo só se transforma em uma coisa: ódio. Sim, funciona, é muito
eficaz, por mais que a gente tente combater, o ódio vem, sempre vem.
Ele, o ódio, é a chave do sucesso. Não há regime
autoritário que exista sem esse componente. Não se iludam: eles sabem muito bem
o que estão fazendo.
Daniel Medeiros - doutor
em Educação Histórica e professor no Curso Positivo
danielmedeiros.articulista@gmail.com
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