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sexta-feira, 19 de maio de 2017

A mulher do outro Brasil



Costumava acordar pontualmente às cinco. Andava quase hora da periferia longínqua em que morava para as bordas mais distantes da cidade. Era de lá que o ônibus partia. Com alguma boa sorte, pegava um lugar.

Adormecer, ela adormeceria, era o cansaço. Se fosse em pé, dormiria mal; umas cochiladas, no amparo apertado do ônibus lotado. Viajar sentada era dormir com conforto duas, três, quatro horas até o emprego.

Melhor não poderia ser. Havia um problema, mas que não era de maior preocupação: passar do ponto; acontecia muita vez de não despertar. Restava muito bem, ainda que isso a afastasse boas pernadas do serviço.

Tinha licença para desjejuar no trabalho, e o fazia fartamente. Então, aos afazeres. A residência era grande, mas a patroa morava só; não cansava. Desgastante era o regresso, duas, três, quatro horas, em pé. Aí, doía só de pensar.

Chegava moída, lá pelas 22, depois de um trecho andado. Via o filho e as três filhas. O filho, mais velho, era avoado. Tomara uma moto emprestada, batera num carro. Fugiu. Mas a moto mesma, não tinha como pagá-la.

Duas dificuldades: o veículo era roubado, não podia ser reivindicado; o “dono” da rês alheia queria o que era “seu”, e tinha como cobrar. O problema tornou-se a mais cara prestação das obrigações da mulher. Foi quitando.

Mais grave, contudo, foi outro acontecimento. As janelas da casa ainda se fechavam por tábuas pregadas, mas já adquirira as aberturas; faltava colocá-las. Não fosse o fato de as terem roubado e a patroa já a teria ajudado.

Delegacia, boletim de ocorrência, depoimento. Nada. Sabe-se lá quem foi... Caso de esquecer. Um recurso: o chefe do tráfico. O filho intermediou a conversa. Foi lá. Contou a tristeza, até chorou. Promessa de ver solução.

Tudo investigado, Justiça feita. O larápio foi condenado à devolução, e melhor: tábuas lixadas, pintadas, colocadas. Honesta, foi à Delegacia, para que se evitasse trabalho, e também pra desafrontar o desmazelo com o seu caso.

Mas a mulher fazia ingênua confissão: terceirizara o exercício arbitrário das próprias razões. O pior só não aconteceu porque o delegado teve comiseração. Desentendeu o narrado, agradeceu o comunicado, arquivaria o inquérito.

Conta que saiu de tudo muito afortunada: no dia da visita reclamatória à autoridade do local, levara a filha, que era bonita. O moço que ouviu suas queixas mostrou escuta com atenção, mas seus olhos grudaram na menina.

A mãe fez que não viu; a filha saiu contente. O caso prosperou: namoro. Bem bom que tenha acontecido. Ela já tem idade, quase formada. O rapaz é sério e com meios. Tem alguma coisa de errado? Pode ter, mas quem não tem?

Foi convidada pelo genro. Conversa particular. Estava tudo acertado: não devia mais as parcelas da moto. O filho tinha que ser homem. Foi combinado que pagaria com serviços, e ainda ia sair no ganho, até podia ajudá-la.

Pensou e, é certo, entendeu. Mas, que fazer? Era o destino se mostrando, estava fora do seu controle. E há males que vêm pra bem. Ademais, o filho já ia naquela direção. Quanto à menina, um pedido: que se formasse.

Pensou até em se aconselhar com a patroa. Alguma culpa estava lhe pesando. E tudo aconteceu muito rápido, ficou desatinada. Mas, não; melhor não. Não seria entendida, mesmo que se esforçasse com a melhor explicação. 

Chegou a sonhar com a conversa nos solavancos da locomoção para o emprego. Sonhou que tudo foi confusão, como se ela falasse numa língua não compreendida. Viu que a patroa fazia esforço, mas não a entendia.

Pensou que as horas de condução a transportavam entre dois Brasis. Explicou-se o seu sonho. Ela morava num país; a patroa morava noutro. Nalgumas coisas não se iriam entender. Sorriu: estava em viagem internacional.

Então, chegou contando, toda feliz: a filha namorava um empresário de sucesso nos negócios locais, o filho estava encaminhado. Faltavam as pequenas, só; era esperar para ver. Na retorno, o sorriso se esvaneceu.




Léo Rosa de Andrade 


 

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