Costumava acordar
pontualmente às cinco. Andava quase hora da periferia longínqua em que morava
para as bordas mais distantes da cidade. Era de lá que o ônibus partia. Com
alguma boa sorte, pegava um lugar.
Adormecer, ela
adormeceria, era o cansaço. Se fosse em pé, dormiria mal; umas cochiladas, no
amparo apertado do ônibus lotado. Viajar sentada era dormir com conforto duas,
três, quatro horas até o emprego.
Melhor não poderia ser.
Havia um problema, mas que não era de maior preocupação: passar do ponto;
acontecia muita vez de não despertar. Restava muito bem, ainda que isso a
afastasse boas pernadas do serviço.
Tinha licença para
desjejuar no trabalho, e o fazia fartamente. Então, aos afazeres. A residência era
grande, mas a patroa morava só; não cansava. Desgastante era o regresso, duas,
três, quatro horas, em pé. Aí, doía só de pensar.
Chegava moída, lá pelas
22, depois de um trecho andado. Via o filho e as três filhas. O filho, mais
velho, era avoado. Tomara uma moto emprestada, batera num carro. Fugiu. Mas a
moto mesma, não tinha como pagá-la.
Duas dificuldades: o
veículo era roubado, não podia ser reivindicado; o “dono” da rês alheia queria
o que era “seu”, e tinha como cobrar. O problema tornou-se a mais cara
prestação das obrigações da mulher. Foi quitando.
Mais grave, contudo, foi
outro acontecimento. As janelas da casa ainda se fechavam por tábuas pregadas,
mas já adquirira as aberturas; faltava colocá-las. Não fosse o fato de as terem
roubado e a patroa já a teria ajudado.
Delegacia, boletim de
ocorrência, depoimento. Nada. Sabe-se lá quem foi... Caso de esquecer. Um
recurso: o chefe do tráfico. O filho intermediou a conversa. Foi lá. Contou a
tristeza, até chorou. Promessa de ver solução.
Tudo investigado, Justiça
feita. O larápio foi condenado à devolução, e melhor: tábuas lixadas, pintadas,
colocadas. Honesta, foi à Delegacia, para que se evitasse trabalho, e também
pra desafrontar o desmazelo com o seu caso.
Mas a mulher fazia ingênua
confissão: terceirizara o exercício arbitrário das próprias razões. O pior só
não aconteceu porque o delegado teve comiseração. Desentendeu o narrado,
agradeceu o comunicado, arquivaria o inquérito.
Conta que saiu de tudo
muito afortunada: no dia da visita reclamatória à autoridade do local, levara a
filha, que era bonita. O moço que ouviu suas queixas mostrou escuta com
atenção, mas seus olhos grudaram na menina.
A mãe fez que não viu; a
filha saiu contente. O caso prosperou: namoro. Bem bom que tenha acontecido.
Ela já tem idade, quase formada. O rapaz é sério e com meios. Tem alguma coisa
de errado? Pode ter, mas quem não tem?
Foi convidada pelo genro.
Conversa particular. Estava tudo acertado: não devia mais as parcelas da moto.
O filho tinha que ser homem. Foi combinado que pagaria com serviços, e ainda ia
sair no ganho, até podia ajudá-la.
Pensou e, é certo,
entendeu. Mas, que fazer? Era o destino se mostrando, estava fora do seu
controle. E há males que vêm pra bem. Ademais, o filho já ia naquela direção.
Quanto à menina, um pedido: que se formasse.
Pensou até em se
aconselhar com a patroa. Alguma culpa estava lhe pesando. E tudo aconteceu
muito rápido, ficou desatinada. Mas, não; melhor não. Não seria entendida,
mesmo que se esforçasse com a melhor explicação.
Chegou a sonhar com a
conversa nos solavancos da locomoção para o emprego. Sonhou que tudo foi
confusão, como se ela falasse numa língua não compreendida. Viu que a patroa
fazia esforço, mas não a entendia.
Pensou que as horas de
condução a transportavam entre dois Brasis. Explicou-se o seu sonho. Ela morava
num país; a patroa morava noutro. Nalgumas coisas não se iriam entender.
Sorriu: estava em viagem internacional.
Então, chegou contando,
toda feliz: a filha namorava um empresário de sucesso nos negócios locais, o
filho estava encaminhado. Faltavam as pequenas, só; era esperar para ver. Na
retorno, o sorriso se esvaneceu.
Léo Rosa de Andrade
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