Parlamentares, juízes e
políticos se regozijam com a iminente possibilidade de aprovação da lei de
mediação judicial. Os argumentos são muitos. A cultura da intransigência é
substituída pela da solidariedade. A convivência social é estimulada. A solução
consensual dos conflitos de interesse é atributo do desenvolvimento cultural
das sociedades. O Judiciário brasileiro se desemperra, em favor dos
jurisdicionados.
Há, entretanto, o outro lado da moeda.
Direitos cortados ao meio são quase- direitos, não direitos integrais. Os
romanos conheceram os quase-contratos. Resta saber se direito e justiça são
entidades que podem ser relativizadas, sem se descaracterizarem.
Cremos que não. Também os romanos
definiram o direito enquanto "dar a cada um aquilo que é seu". E
formularam outras definições: "viver honestamente", "não
lesar outrem". Por outro lado, filósofos de sempre se empenharam em
conceituar o que se entende por justiça. Há inúmeros esboços de definição.
Intuitiva ou indutivamente, o povo acabou por ter uma noção de justiça,
coadjuvada por princípios éticos, costumeiros, religiosos etc.
Há direitos de compreensão simples,
mediana ou complexa. Quanto a estes últimos, costumam divergir as escolas, os
doutrinadores e a jurisprudência. Os ministros das Supremas Cortes não resgatam
consensos. As votações são majoritárias, não unânimes. Nessa hipótese, a
mediação, que resulta na conciliação, na autocomposição dos conflitos,
efetivamente, é salutar.
Todavia, numa imensa maioria de
hipóteses de colisão de interesses jurídicos, a mediação levará cada um
a ter o seu, pela metade ou cortado em parte. O outro, em contrapartida,
não viveu honestamente e o lesou. O acordo é feito, porém a insatisfação
integral do direito gera a frustração, um estado psicológico grave que se
encontra a meio caminho da depressão, sobretudo quando a transigência tem por
objeto valores essenciais ao homem, que não tem como aguardar, por décadas, a
solução por meio do processo. O tempo é o grande chantagista. Por
outro lado, o titular de um direito subjetivo, não satisfeito plenamente, é um
homem que passa a não crer em suas instituições.
Ao tecer tantas loas à mediação, políticos e
juristas reconhecem que o Estado brasileiro entrou em estado falimentar, sob o
aspecto do direito, ou, pelo menos, de recuperação judicial. Esse Estado foi
incapaz de dar ou repor ao lesado o que é seu, estimulou o viver desonesto e a
lesão aos demais componentes da vida societária.
Reconheceu que a Justiça está enfartada.
É claro que é preciso descongestioná-la. Porém, não há uma verificação de suas
causas profundas. Os lidadores judiciários já se cansaram de dizer que a maior
clientela da Justiça é a Fazenda Pública. Esta, ou despreza os direitos do
cidadão, malgrado as agências reguladoras de que se serve, compelindo-os a
buscar a intervenção de um juiz; ou não recebe seus tributos, que não são
recolhidos porque o brasileiro detesta recolher impostos. Não há retorno,
há, em larga escala, descaminho dos tributos para os bolsos dos corruptos.
O cidadão brasileiro tem de trabalhar meio ano para pagar impostos, uma
violência ao princípio constitucional, entronizado pela Carta Constitucional de
1988, importado do ordenamento alemão, da capacidade contributiva. Os
impostômetros estão por aí, a demonstrar essa realidade iníqua. A Fazenda
Pública não estará sujeita à mediação proposta, à renúncia fiscal, sobretudo em
momentos de agonia financeira, como o presente. Transijam, menos o Estado,
ouvem os súditos; é outra derrapagem lógica que atormentará a consciência
do brasileiro que fez um acordo e obteve um arremedo de seu direito.
A mediação não tem por objetivo realizar
o direito, apenas dar como solucionada sua atividade-meio. Vinda do Estado, tem
ares de justiça, apenas ares. O jurisdicionado não atentido ou é
um conformista ou um iludido. Dir-se-á que, há décadas, a Justiça do
Trabalho encerra os conflitos entre o capital e o trabalho mediante acordos. É
verdade, mas podemos afirmar, também, após décadas de advocacia sindical, que
são frequentes os casos em que os trabalhadores procuram o sindicato para
demonstrar seu inconformismo com o acordo, dias após sua celebração, que
não pode mais ser revisto. Considerado o direito posto, segundo as leis
brasileiras, o empregador não viveu honestamente e lesou seus empregados.
O ideal seria o de, primeiro, ninguém se
afastar da máxima "honeste vivere". Aí, sim, teríamos uma mudança
cultural, um avanço civilizatório nos costumes. Isso ocorre em países
civilizados, em que um processo vai da primeira instância à Suprema Corte em
dois anos, no máximo. E as consequências pelo descumprimento da lei são
sensíveis, para não dizer drásticas. Não vale a pena, ao desonesto,
especialmente ao Estado e seus órgãos da administração direta e indireta, lesar
alguém. As penalidades de pagamento em dobro, multas, honorários advocatícios e
de todos os acréscimos previstos desestimulam um comportamento errático. Logo,
espontaneamente ou por meio de uma repressão séria, o homem pensa duas
vezes antes de compelir o outro a promover uma ação judicial para fazer valer o
direito que ele desprezou.
A mediação no direito equivale, no campo
da saúde, à meia-medicina. Aos atendimentos precários, aos medicamentos não
fiscalizados, ao "mais médicos", em suma, à impressão que se dá ao
povo de que ele é atendido em necessidades básicas devidas pelo Poder Público.
Não poderíamos ser contrários ao
desafogamento do Judiciário. O instituto da mediação, porém, se permanente,
será a negação para sempre do direito, que não admite, em tese e no plano
filosófico e psicológico, relativismos que, ao fim e ao cabo, o negam.
Consequentemente, nada será se não tivermos uma mudança fiscal profunda, em que
os tributos observem alíquotas menores, sejam espontaneamente recolhidos,
garantam as finanças do Estado, que voltam ao contribuinte na forma de
serviços, e a redução drástica das milhões de execuções fiscais que são a causa
do enfarto de nosso aparato judiciário.
Enfim, a mediação, neste instante, não
deve ser motivo de comemorações. É a consagração de um mal necessário, que deve
durar somente enquanto o direito não seja algo palpável e imediatamente
reposto a seu titular, em caso de lesão, pela eficácia do Estado-Juiz. E
enquanto, pela carência de educação, pelo desrespeito a valores éticos, ou
pela ausência de repressão desestimuladora, grande parte de nosso povo e
nossas instituições ainda considere a demanda judicial um bom negócio.
Amadeu Garrido
de Paula - advogado especialista em Direito Constitucional, Civil,
Tributário e Coletivo do Trabalho
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