terça-feira, 21 de abril de 2015

O direito relativo




Parlamentares, juízes e políticos se regozijam com a iminente possibilidade de aprovação da lei de mediação judicial. Os argumentos são muitos. A cultura da intransigência é substituída pela da solidariedade. A convivência social é estimulada. A solução consensual dos conflitos de interesse é atributo do desenvolvimento cultural das sociedades. O Judiciário brasileiro se desemperra, em favor dos jurisdicionados.
Há, entretanto, o outro lado da moeda. Direitos cortados ao meio são quase- direitos, não direitos integrais. Os romanos conheceram os quase-contratos. Resta saber se direito e justiça são entidades que podem ser relativizadas, sem se descaracterizarem.
Cremos que não. Também os romanos definiram o direito enquanto "dar a cada um aquilo que é seu". E formularam outras definições: "viver honestamente", "não lesar  outrem". Por outro lado, filósofos de sempre se empenharam em conceituar o que se entende por justiça. Há inúmeros esboços de definição. Intuitiva ou indutivamente, o povo acabou por ter uma noção de justiça, coadjuvada por princípios éticos, costumeiros, religiosos etc.
Há direitos de compreensão simples, mediana ou complexa. Quanto a estes últimos, costumam divergir as escolas, os doutrinadores e a jurisprudência. Os ministros das Supremas Cortes não resgatam consensos. As votações são majoritárias, não unânimes. Nessa hipótese, a mediação, que resulta na conciliação, na autocomposição dos conflitos, efetivamente, é salutar.
Todavia, numa imensa maioria de hipóteses de colisão de interesses jurídicos, a mediação levará  cada um a ter o seu, pela metade ou cortado em parte. O outro, em contrapartida, não viveu honestamente e o lesou. O acordo é feito, porém a insatisfação integral do direito gera a frustração, um estado psicológico grave que se encontra a meio caminho da depressão, sobretudo quando a transigência tem por objeto valores essenciais ao homem, que não tem como aguardar, por décadas, a solução por meio do processo. O tempo é o grande chantagista.   Por outro lado, o titular de um direito subjetivo, não satisfeito plenamente, é um homem que passa a não crer  em suas instituições.
Ao tecer tantas loas à mediação, políticos e juristas reconhecem que o Estado brasileiro entrou em estado falimentar, sob o aspecto do direito, ou, pelo menos, de recuperação judicial. Esse Estado foi incapaz de dar ou repor ao lesado o que é seu, estimulou o viver desonesto e a lesão aos demais componentes da vida societária.
Reconheceu que a Justiça está enfartada. É claro que é preciso descongestioná-la. Porém, não há uma verificação de suas causas profundas. Os lidadores judiciários já se cansaram de dizer que a maior clientela da Justiça é a Fazenda Pública. Esta, ou despreza os direitos do cidadão, malgrado as agências reguladoras de que se serve, compelindo-os a buscar a intervenção de um juiz; ou não recebe seus tributos, que não são recolhidos porque o brasileiro detesta recolher impostos.  Não há retorno, há, em larga escala, descaminho dos tributos para os bolsos dos corruptos. O cidadão brasileiro tem de trabalhar meio ano para pagar impostos, uma violência ao princípio constitucional, entronizado pela Carta Constitucional de 1988, importado do ordenamento alemão, da capacidade contributiva. Os impostômetros estão por aí, a demonstrar essa realidade iníqua. A Fazenda Pública não estará sujeita à mediação proposta, à renúncia fiscal, sobretudo em momentos de agonia financeira, como o presente. Transijam, menos o Estado, ouvem os súditos;  é outra derrapagem lógica que atormentará a consciência do brasileiro que fez um acordo e obteve um arremedo de seu direito.
A mediação não tem por objetivo realizar o direito, apenas dar como solucionada sua atividade-meio. Vinda do Estado, tem ares de justiça, apenas ares. O jurisdicionado não atentido ou é um conformista ou um iludido. Dir-se-á que, há décadas, a Justiça do Trabalho encerra os conflitos entre o capital e o trabalho mediante acordos. É verdade, mas podemos afirmar, também, após décadas de advocacia sindical, que são frequentes os casos em que os trabalhadores procuram o sindicato para demonstrar seu inconformismo com o acordo, dias após sua celebração,  que não pode mais ser revisto. Considerado o direito posto, segundo as leis brasileiras, o empregador não viveu honestamente e lesou seus empregados.
O ideal seria o de, primeiro, ninguém se afastar da máxima "honeste vivere". Aí, sim, teríamos uma mudança cultural, um avanço civilizatório nos costumes. Isso ocorre em países civilizados, em que um processo vai da primeira instância à Suprema Corte em dois anos, no máximo. E as consequências pelo descumprimento da lei são sensíveis, para não dizer drásticas. Não vale a pena, ao desonesto,  especialmente ao Estado e seus órgãos da administração direta e indireta, lesar alguém. As penalidades de pagamento em dobro, multas, honorários advocatícios e de todos os acréscimos previstos desestimulam um comportamento errático. Logo, espontaneamente ou por meio de uma repressão séria, o homem pensa duas vezes antes de compelir o outro a promover uma ação judicial para fazer valer o direito que ele desprezou.
A mediação no direito equivale, no campo da saúde, à meia-medicina. Aos atendimentos precários, aos medicamentos não fiscalizados, ao "mais médicos", em suma, à impressão que se dá ao povo de que ele é atendido em necessidades básicas devidas pelo Poder Público.
Não poderíamos ser contrários ao desafogamento do Judiciário. O instituto da mediação, porém, se permanente,  será a negação para sempre do direito, que não admite, em tese e no plano filosófico e psicológico, relativismos que, ao fim e ao cabo, o negam. Consequentemente, nada será se não tivermos uma mudança fiscal profunda, em que os tributos observem alíquotas menores, sejam espontaneamente recolhidos, garantam as finanças do Estado, que voltam ao contribuinte na forma de serviços, e a redução drástica das milhões de execuções fiscais que são a causa do enfarto de nosso aparato judiciário.
Enfim, a mediação, neste instante, não deve ser motivo de comemorações. É a consagração de um mal necessário, que deve durar somente enquanto o direito não seja algo palpável e imediatamente reposto a seu titular, em caso de lesão, pela eficácia do Estado-Juiz. E enquanto, pela carência de educação, pelo desrespeito a valores éticos, ou pela ausência de repressão desestimuladora, grande parte de nosso povo e nossas instituições ainda  considere a demanda judicial um bom negócio.

Amadeu Garrido de Paula - advogado especialista em Direito Constitucional, Civil, Tributário e Coletivo do Trabalho

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