Parecemos uma
decorrência simples de nós mesmos. Descreio da linearidade da História, mas às
vezes me fica a impressão que somos, nos privilégios de certas castas de hoje,
um simples desdobramento das desigualdades do passado.
Com a vinda da Corte portuguesa ao Brasil, em fuga
apressada de Napoleão Bonaparte, aqui aportaram regalias de nobreza. Aos
nobres, então, se reservou o que havia de melhor na Colônia. E o melhor era
trabalhar no aparato estatal real, ou seja, em algum emprego público.
Entre 15 e 25 mil, é o número estimado de cortesãos que
atravessaram o Atlântico. Deduzindo-se as mulheres, as crianças e alguns
serviçais, supõe-se que foram criados, para acomodar quem concernia à Corte,
algo entre 5 e 10 mil empregos públicos.
Empregos para pôr em disposição adequada a gente que se
confundia com a máquina administrativa do Estado português sediado, por
circunstâncias forçosas, nestas terras além-mar. Não obstante fugido às pressas
para a Colônia, Portugal teve tempo de trazer na bagagem os modos portugueses
de ser.
Dessa forma, a nossa Coisa Pública nos caiu empacotada,
lançada faustosa sobre o que tínhamos de uma incipiente Sociedade. Não fomos
construindo, conforme os desdobramentos das necessidades, a nossa burocracia
estatal; o Reino trasladado deitou-se pronto sobre o Brasil.
No andar dos acontecimentos, o lugar nobre do emprego
público foi inaugurado pelos áulicos e, depois, se tornou recinto dos filhos
dos coronéis da política. Por fim, resultou em prêmio para os indicados
partidários, que souberam ser mantidos por “direitos adquiridos”.
Oriundo desse quadro, está aí, ainda hoje, a nobreza do
emprego no Estado. Um corporativismo que compartilha vantagens majestáticas, ao
contrário do trabalho na iniciativa privada, que não as possui, embora
indiretamente as sustente. As repartições públicas, enfim, permanecem fato ou
são consequência das partilhas partidarizadas da sua gerência e dos
penduricalhos de “vantagens asseguradas”.
Tudo isso, é claro, desembocou na Previdência.
Atualmente, temos dois regimes: o Regime Próprio de Previdência Social
(RPPS), que tem por responsabilidade o adimplemento da aposentadoria e outros
benefícios previdenciários da maioria dos funcionários públicos, e o Regime
Geral de Previdência Social (RGPS), responsável pela gestão da aposentadoria e
outros benefícios previdenciários dos trabalhadores do setor privado
(empregados e autônomos).
Até onde a internet nos pôde informar, essa separação
entre trabalhadores é uma exclusividade nacional. Nesse contexto, trazemos
dados apresentados e discutidos no programa Canal Livre levado ao ar em 10 de
abril de 2017, apresentado por Ricardo Boechat, com Fernando Mitre e Eduardo
Oinegue, recebendo José Márcio Camargo e José Roberto Savoia (https://bit.ly/2ZEgml8).
Gastamos 13% do PIB com previdência com pessoas acima dos
60 anos, assim como a Alemanha. Temos, todavia, 11% da população acima de 60 anos;
a Alemanha, 23%. Países com população de mais de 60 anos equivalente à nossa
gastam em média 4% do PIB.
No setor público há paridade de vencimentos entre o
servidor que está trabalhando e o aposentado (também este “benefício” parece
ser prenda nacional). A média de aposentadoria nesse setor é de R$
9.000,00. Por sua vez, no setor privado é de R$ 1.600,00. Ou seja, exatamente o
setor produtivo, que arca com os custos da burocracia administrativa, é o
castigado (descomedidamente menos aquinhoado) pelo nosso sistema.
Entre os Poderes da República, o gasto médio no
Legislativo é R$ 28.000,00; no Judiciário é R$ 25.000,00. No Ministério Público
é acima de R$ 30.000,00. A média do Executivo é mais reduzida, inclusive pela
discrepância de salários dentro do próprio Poder.
O setor público gasta R$ 115 bilhões com 1 milhão de
aposentados. De outro lado, o setor privado gasta 500 bilhões com 33 milhões de
aposentados. A quantidade de aposentados com a média de R$ 1.600,00 é de 33
milhões de indivíduos. Em clara desproporção, contudo, um milhão de pessoas
alcança média de R$ 28.000,00.
Não obstante haver 33 aposentados no setor privado para
cada um no setor público, o déficit acumulado do público de 2001 a 2015 foi de
R$ 1,3 trilhão; o do privado foi de R$ 450 bilhões. Para efeito de
comparação, registra-se que, nesse mesmo período, o Bolsa Família custou aos
cofres da Nação R$ 250 milhões, atendendo a 30 milhões de pessoas.
A Previdência tem R$ 450 bilhões de crédito. Deles, R$
300 bilhões tornaram-se incobráveis por diversos motivos. Ademais, esse crédito
é um estoque, mesmo que se o realizasse, seria uma entrada única. O problema da
Previdência, todavia, é de fluxo. Ainda que em um momento se cobrisse o “furo”,
ele atuarialmente se repetiria.
O sistema de aposentadoria do setor público – isso é
mostrado pelos números – resta como o maior programa brasileiro de
transferência permanente de renda de pobre para rico. Esse setor formou para si
um formidável acervo de direitos em aposentadorias e pensões.
Enquanto um trabalhador de iniciativa privada recebe do
INSS um benefício que, no máximo, pode chegar ao valor de R$ 5.645,80, o
servidor público desfruta de aposentadoria integral. Quem, por exemplo, ganhar
R$ 50.000,00 mensais se aposentará com a mesma quantia que recebia em
atividade.
A previdência dos regimes próprios (funcionários
públicos), portanto, é direcionada à população mais bem remunerada e mais rica
do País. Essa é a conclusão alcançada por Medeiros e Souza (2012), do IPEA, em
artigo intitulado Previdências dos trabalhadores dos setores público e privado
e desigualdade no Brasil (https://bit.ly/2WXYorZ).
A pesquisa permitiu apurar que não há outro fator de
composição, em termos de desigualdade no Brasil, tão concentrador de riqueza
quanto as rendas advindas dos RPPS (Regimes Gerais Próprios da Previdência
Social).
Para os pesquisadores, a maior parcela dessa concentração
tem origem nos benefícios previdenciários, cujos valores são bem mais altos do
que o do teto do regime geral, que abrange o setor privado (empregados e
autônomos).
O estudo explicita que, nada obstante a previdência dos
funcionários públicos compor menos de 1% da renda familiar da população
brasileira, essa previdência (pública) acentuadamente acima do teto da
previdência privada (INSS) é de tal maneira concentradora de renda que se torna
responsável por cerca de 7% de toda a desigualdade existente no Brasil.
Apontando na mesma direção, Roberto Amaral C. P. Santos,
do Centro de Estudos em Processos de Investimento – FGV/EESP, em estudo
publicado em março de 2017, Reforma da Previdência e Desigualdade (https://bit.ly/2X1cgGI),
explica que o sistema previdenciário vigente no Brasil atua como mecanismo
propiciador e perpetuador de desigualdade.
Assim é, conclui, porque, apesar de ocorrer alguma
progressividade, ainda prevalecem efeitos regressivos contrários, destacando-se
as disparidades entre as regras de aposentadoria dos funcionários públicos em
comparação com os privados (autônomos e empregados). Referidas regras resultam
na captação e desproporcionada redistribuição de renda em favor dos indivíduos
mais ricos.
Em Textos para Discussão – 210 (https://bit.ly/2Ldhwjp),
o consultor legislativo Pedro Fernando Nery estampa que a aposentadoria do RPPS
da União (trabalhador público) paga em média benefícios de R$ 7.550,00, o que
corresponde a mais de 5 vezes a média dos benefícios do RGPS (trabalhador
privado) e a mais de 6 vezes a renda per capta nacional.
Conforme Nery, a aposentadoria por tempo de contribuição
é o benefício de maior valor médio do RGPS, estando 73% acima da média de outros
benefícios da Previdência (R$ 2.280,00 contra R$ 1.320,00), e é o dobro da
renda per capta nacional calculada pelo IBGE, de R$ 1.140,51. Comparativamente,
tal valor se situa 13 vezes acima da linha de pobreza do País e 26 vezes acima
da de extrema pobreza, que balizam benefícios assistenciais como o Bolsa
Família.
É pertinente
destacar que, no ano de 2012, a Lei 12.618/2012 culminou por eliminar essa
vantagem – aposentadoria integral – para os novos servidores. Mas, por um longo
período, até a lei efetivamente começar a surtir seus efeitos financeiros, os
servidores públicos, que recebem acima do teto da Previdência e compõem somente
5% dos beneficiados do INSS, ficarão com quase 20% dos recursos da Previdência
Social.
No apanhado dos fatos, o pobre aposenta-se por idade, aos
65 anos; 60% dos aposentados por idade são de baixa renda. Classe média e alta
é que se aposentam por contribuição, alcançando o teto do INSS. À maioria dos
aposentados toca a aposentadoria mínima, que é o salário mínimo.
Resta, pois, que o nosso sistema previdenciário, se é
efetivamente um problema para o Brasil, é uma solução para as castas que se
situaram bem nas entranhas do Estado e dele ou por meio dele sugam tudo o que
podem, inclusive a renda de final de vida dos desfavorecidos da Nação.
Léo Rosa de Andrade - escritor, professor,
psicólogo e jornalista.
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