A cidade de São Paulo apresentou
crescimento populacional explosivo na transição do século 19 para o 20. Em
pouco mais de seis décadas, entre 1872 e 1934, a população saltou de
aproximadamente 31 mil pessoas para mais de um milhão. A imigração foi o fator
decisivo. Em 1920, quase dois terços dos habitantes da capital eram
estrangeiros ou descendentes. E mais da metade dos adultos maiores de 15 anos
eram italianos. São Paulo tornou-se, depois de Nova York e Buenos Aires, a
cidade mais italiana fora da Itália.
Os
italianos não só contribuíram para a formação da nascente classe operária e dos
movimentos anarquista e comunista, que pretenderam representá-la, como também
alteraram profundamente o cotidiano da cidade: sua língua, seus costumes, suas
formas de convivência.
Como os
recém-chegados foram recebidos pelos antigos habitantes? Que tensões e que
compromissos pontuaram o relacionamento dos dois grupos? Como a italianidade
contribuiu para a construção de uma paulistanidade?
Um estudo recente, conduzido no Instituto
de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP) pela
historiadora Virgínia de Almeida Bessa,
atualmente professora do Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), procurou responder a essas e outras perguntas.
E, para isso, seguindo um caminho que ainda não havia sido explorado,
investigou o papel do teatro, especialmente do teatro popular, na construção e
negociação das identidades na São Paulo da época.
Os resultados foram sistematizados no
artigo When the Italians came on the scene: immigration and negotiation
of identities in the popular theater of São Paulo in the early twentieth
century, publicado como um dos capítulos do livro Italianness and Migration from
the Risorgimento to the 1960s, editado por Stéphane
Mourlane, professor da Aix-Marseille Université, na França.
“Os
viajantes que visitavam São Paulo no período diziam ter a impressão de estarem
em uma cidade da Itália, porque tudo parecia ter vindo de lá: a comida, o
estilo das moradias e até os anúncios municipais sobre pagamento de impostos,
escritos em português e italiano”, diz Bessa.
Um
depoimento interessante, mencionado pela pesquisadora, é o da médica e
escritora lombarda Gina Lombroso, que visitou São Paulo em 1908 e se
surpreendeu com a onipresença italiana na capital: “O caráter mais marcante da
cidade é sua italianidade. Se escuta mais falar italiano em São Paulo do que em
Turim, Milão ou Nápoles, porque, enquanto entre nós falamos os dialetos, em São
Paulo todos os dialetos se fundem sob a influência dos venezianos e toscanos,
que são a maioria, e os nativos adotam o italiano como língua oficial”.
A partir da década de 1910, porém, a
predominância dos italianos nortistas foi substituída pela dos sulistas, que
tiveram seus pontos de origem transferidos do Vêneto, no norte, para a Campânia
e Calábria, no sul. “Em decorrência disso, a língua falada pelos imigrantes e
descendentes tornou-se um pidgin ítalo-brasileiro,
formado pela mistura de vários dialetos sob forte influência do português”,
informa Bessa.
A grande
maioria desses imigrantes morava nos bairros operários, com concentrações
regionais importantes, mas não exclusivas: os calabreses no Bixiga, os
napolitanos no Brás, os venezianos no Bom Retiro. “Oriundos de uma Itália
recém-unificada, cujo desenvolvimento era marcado por profundas diferenças regionais
de caráter econômico, social e cultural, especialmente entre o norte e o sul,
esses grupos não compartilhavam inicialmente um sentimento nacional”, escreveu
Bessa no artigo em pauta.
E, citando Oswaldo Truzzi, professor titular
sênior do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de
São Carlos (UFSCar) e membro da coordenação da área de Ciências Humanas e Sociais
da FAPESP, continuou: “Mais do que procurar por uma suposta identidade italiana
trazida pelos imigrantes, seria mais apropriado investigar o processo que levou
à construção de uma italianità all’estero [italianidade
no exterior]”.
Entre os vários fatores que
contribuíram para isso, o teatro desempenhou um papel importante, porém,
ambíguo. “No interior da comunidade imigrante, os grupos amadores de teatro
reuniam italianos de diversas origens a fim de representar peças em italiano,
especialmente de autores ligados ao Risorgimento [Ressurgimento,
nome dado ao movimento que resultou na unificação da Itália]. Setenta
associações desse tipo chegaram a funcionar ao mesmo tempo todos os finais de
semana, promovendo saraus patrióticos. Por outro lado, fora da comunidade
imigrante, o teatro contribuiu para divulgar imagens estereotipadas dos
italianos, transformados em personagens-tipo caracterizados pela personalidade
expansiva e a fala macarrônica”, afirma Bessa.
O veículo mais utilizado na difusão
desses estereótipos foi o teatro de revista. Era um gênero bastante popular,
que se caracterizava pela sátira aos costumes, às figuras públicas e aos
modismos e outros acontecimentos da atualidade. Estruturalmente, consistia em
uma sucessão de sketches e de números de
canto e de dança, sem ligação necessária entre si, mas amarrados por uma dupla
ou trio de personagens, os compères (compadres),
que funcionavam como fio condutor.
“Nas
revistas ambientadas em São Paulo, que começaram a ser produzidas na última
década do século 19, era quase obrigatório que um dos ‘compadres’ fosse um
personagem-tipo caipira, morador do interior do Estado de São Paulo, que vinha
passar uns dias na capital e ficava embasbacado com a urbanização acelerada da
cidade e o grande fluxo imigratório que descaracterizavam o antigo vilarejo
colonial. Com o tempo, outro ‘compadre’ da dupla ou trio passou a ser
representado pelo personagem-tipo do imigrante italiano”, conta Bessa.
Não foram preservadas fotografias
retratando atores caracterizados como italianos. Mas é possível ter uma boa
ideia de como esses imigrantes eram representados, por meio das caricaturas
publicadas na imprensa da época. A mais famosa delas era a de Juò Bananère
(João, Vendedor de Bananas), personagem criado pelo escritor e engenheiro
Alexandre Ribeiro Marcondes. Durante quatro anos, Bananère “assinou” uma coluna
semanal na revista O Pirralho, na qual
comentava, em linguagem macarrônica, acontecimentos políticos cotidianos. A
coluna era ilustrada por caricaturas feitas por Voltolino, pseudônimo de Lemmo
Lemmi, um descendente de italianos.
O processo
de construção de identidades se deu por meio da relação do “italiano” com o
“caipira. E Bessa identificou quatro momentos nesse processo, exemplificados
por quatro peças levadas à cena em épocas distintas no teatro de revista. Na
primeira, “O Boato”, encenada em 1898 por uma companhia carioca, os tipos
italianos aparecem como personagens secundários, no papel de vendedores
ambulantes em cenas isoladas. A comunicação desses personagens com o “caipira”
é bastante ruidosa. A segunda, “Fado e Maxixe”, escrita pelo brasileiro João
Phoca e pelo português André Brun e levada ao palco em 1911, já mostra uma
certa assimilação da cultura do imigrante: o personagem “caipira” é chamado a
cantar um cateretê, gênero musical característico do interior paulista, e acaba
fazendo uma miscelânea de quadras populares paulistanas e árias de óperas
italianas.
O tipo italiano só aparece pela
primeira vez como personagem do trio condutor em 1914, poucos meses antes da
eclosão da Primeira Guerra Mundial, na peça “São Paulo Futuro”. E sua presença,
ao lado dos outros dois personagens, “o caipira” e “o soldado”, expressa um
momento de relativa tensão. Reclamão, “o italiano” repete o tempo todo o bordão
“Ma questo è una porcheria” (Mas isto é uma porcaria),
em alusão aos hábitos paulistanos.
Na década
de 1930, finalmente, no contexto do confronto da oligarquia paulista com a
ditadura de Getúlio Vargas, as diferenças nacionais foram superadas em nome de
uma identidade local. Na peça “Civil e Paulista”, que põe em cena um “caipira”,
um “italiano” e um “português”, o “italiano” se apresenta como “civil”, em um
resgate do discurso da campanha civilista de 1910, e “paulista”, reivindicando
sua “paulistanidade”. E os três personagens chegam a um grande acordo.
A revista culmina em uma cena
apoteótica em homenagem a Garibaldi, com coristas vestidas de bersaglieri [soldados de infantaria,
caracterizados pelo chapéu de abas largas, decorado com plumas negras, que desempenharam
papel decisivo no processo de unificação da Itália], tendo ao fundo as
bandeiras da Itália, do Brasil e do Estado de São Paulo. “Italianidade,
brasilidade e ‘paulistanidade’ se fundem, nesse momento, para dar origem a uma
identidade local nova, marcada pelo desejo político de retomada da supremacia
de São Paulo”, comenta Bessa.
Segundo a
pesquisadora, as quatro peças exemplificam, de maneira singela, mas arguta, o
processo de assimilação do imigrante italiano pela cidade de São Paulo.
Primeiro, o estranhamento, depois a oposição e finalmente a associação. “O
ponto alto dessa associação se daria nos anos 1950, com a figura do compositor,
cantor, ator e comediante João Rubinato (1912-1982), consagrado como personagem
antológico da cultura ítalo-caipira com o nome artístico de Adoniran Barbosa”,
conclui Bessa.
O artigo mencionado nesta reportagem
é um dos vários produtos da pesquisa de pós-doutorado “Um palco em disputa:
teatro musicado, sociedade e cultura na São Paulo dos anos 1920 e 1930”, realizada
por Bessa no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo
(IEB-USP) com apoio da
FAPESP. A pesquisadora realizou estágio de
pesquisa durante um ano na École des Hautes Études en Sciences Sociales, na
França.
Mais informações sobre o livro Italianness and Migration from the Risorgimento to the 1960s podem
ser acessadas em: https://link.springer.com/book/10.1007/978-3-030-88964-7.
José Tadeu
Arantes
Agência
FAPESP
https://agencia.fapesp.br/teatro-popular-teve-papel-chave-na-integracao-dos-imigrantes-italianos-em-sao-paulo/38498/
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