A pergunta lançada como um grito por Bento XVI ao visitar
o campo de extermínio de Auschwitz em 2006 ecoa 14 anos mais tarde diante dessa
versão hodierna da peste representada pelo Covid-19. Onde estava Deus quando
permitiu o surgimento desse vírus que mata, enferma, esgota recursos materiais
e financeiros, fecha igrejas, destrói empregos, joga bilhões de homens livres
em prisão domiciliar? Lembro que a pergunta profundamente humana de Bento XVI
foi estampada em todos os jornais e replicada em todos os idiomas. Causava um
certo desconforto, uma espécie de cheque mate teológico aplicado às pessoas de
fé. Até, claro, pararmos para pensar.
O Papa, qualquer
Papa, é um ser humano sujeito às nossas mesmas angústias e inquietudes. Ele não
fala com Deus todos os dias através do celular. Quem ainda não se interrogou
sobre o silêncio de Deus? Quem, perante a dor, o sofrimento e a aflição, nunca
clamou pela interferência direta do Altíssimo?
O
paciente Jó, sofredor sempre fiel, nos fornece antigo exemplo bíblico desses
brados da nossa débil natureza, que soam e ressoam através das gerações. A
manifestação de Bento XVI, que ele mesmo chamou de grito da humanidade, foi
humilde e reiterada expressão dessa mesma humanidade. Nem mesmo Jesus escapou a
tão inevitável contingência: "Pai! Por que me abandonaste?"
Não
conheço Auschwitz. Contudo, visitei o campo de concentração de Daschau e o
memorial lá existente. Saímos, minha mulher e eu, com a impressão de havermos
visitado um santuário onde a presença de Deus era quase palpável. E isso não se
constituiu numa contradição. Ao contrário, aquele lugar de tantos padecimentos
se converteu, de modo inevitável, em silencioso ambiente de reflexão e oração,
no qual se percebe com nitidez o que acontece quando os homens, prescindindo do
Senhor do bem, se bestializam e se convertem em senhores do mal.
É fácil imaginar, igualmente, a presença divina atuando
nos incontáveis gestos de solidariedade que, por certo, ocorrem numa situação
como aquela. Ativo no coração dos que o amam, ali agia o Deus de todas as
vítimas, consolo dos que sofrem, esperança dos aflitos e destino final dos seus
filhos. É claro que a nós pareceria mais proveitoso um Deus que atuasse como
gerente supremo dos eventos humanos, intervindo para evitar quaisquer males,
retificando a imprudência dos homens, proclamando verdades cotidianas em
dizeres escritos com as nuvens do céu, fazendo o bem que não fazemos, a todos
santificando por ação de seu querer e pela impossibilidade do erro e do pecado.
Nesse
paraíso terrestre, nada seria como é e nós não seríamos como somos. Não haveria
cruz, nem Cristo. Não haveria lágrimas, nem dor. Tampouco morte, ou vida. É o
imenso respeito divino à nossa liberdade que configura a existência humana como
tal e que nos concede o direito de bradar aos céus. No entanto, tão rapidamente
quanto Deus nos ouve, ouve-nos nosso próprio coração. Sim, porque Deus estava
ali, em Auschwitz, como estava em
Daschau. Mas não havia lugar para ele no coração dos algozes.
Nesta
quaresma das quarentenas, nesta semana que nos leva à Páscoa da Ressureição,
aprendamos com as lições da história, da ciência e da prudência. Aprendamos com
o que acontece quando o materialismo, o relativismo e os totalitarismos
investem na concretização de seus projetos de poder. Eles jamais abandonam o
tabuleiro das opções e seus males sempre se fazem sentir.
Percival Puggina - membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
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