A
crise da Covid-19 redefiniu os termos e as peças do jogo político no Brasil.
Durante o ano passado, o confronto era entre o poder executivo e a liderança do
Congresso Nacional, normalmente em função das pautas de segurança pública e das
questões morais da agenda de Bolsonaro. Em fevereiro deste ano, o conflito
progrediu para as atribuições orçamentárias do Congresso, situação na qual a
Câmara ameaçou ampliar o seu poder sobre os gastos da União e retirar discricionariedade
do Executivo. Essa disputa culminou nos atos em favor do presidente, em 15 de
março. Em meio às pressões por isolamento social, esse ato não aparece sem
custos, pois afasta o presidente da parte da população inclinada a seguir as
recomendações médicas.
A
partir da segunda quinzena de março, as medidas tomadas pelos governos
estaduais para restringir a circulação abriram nova frente de batalha. Daí em
diante, a disjuntiva saúde pública versus economia tem pautado as
relações entre o Congresso e o Presidente. Do lado do Congresso se perfilaram
os governadores e os profissionais da saúde. Ao passo que Bolsonaro conta com
apoio mais aguerrido de seus apoiadores — que agora retornaram à guerra digital
e às manifestações nas ruas —, somados com os comerciantes, eles próprios
inflados pela narrativa presidencial.
O
choque com os governadores não é um fato pequeno. Desde a redemocratização, os governos
estaduais perderam importância na política nacional e tinham dificuldades de
contar com apoio popular local em função das dificuldades impostas pelas leis
de austeridade fiscal. Agora, diante da importância da coordenação das
políticas de saúde estaduais e do afrouxamento das regras orçamentárias
aprovadas pela Câmara, ganham mais espaço para protagonizar a superação da
crise do novo coronavírus.
Em
abril, o conflito com os governadores e o Congresso se expandiu para o interior
do Poder Executivo federal. O ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, após
oscilar entre as medidas mais rígidas de isolamento e o afrouxamento proposto
pelo seu chefe, finalmente se alinhou ao discurso dos governadores e das
autoridades sanitárias. A popularidade de Mandetta e o desafio às determinações
de Bolsonaro (orquestrado pelos governadores) levaram à sua demissão,
destacando mais um desafeto de Bolsonaro com elevada aprovação popular.
Não
bastasse tudo isso, o último milagre da multiplicação de inimigos se deu em um
gabinete longínquo das crises recentes. Bolsonaro quis trocar o cargo de
diretor da Política Federal e viu Sérgio Moro — o seu ministro mais popular —
se demitir, não sem antes dar uma entrevista estarrecedora sobre as pretensões
do presidente sobre a direção da instituição. Diante da decisão inusitada de
prosseguir com uma troca desgastante a essa altura, as especulações de que
Bolsonaro prepara a sua blindagem para o impeachment começaram a crescer. A
insistência na substituição na PF em plena crise da pandemia e crise de governo
só faz sentido como uma estratégia defensiva, seja para monitorar
investigações, seja para agradar setores do Congresso recém-chegados à marquise
do Planalto. A seu favor, resta o apoio popular, estimado em um terço da
população.
O
paradoxo da atual situação é que o presidente não contava com uma pandemia
quando resolveu governar de modo minoritário, sem apoio dos partidos no
Congresso. À medida que essa conjuntura acelerou o seu isolamento político, é
também o tempo da pandemia que ditará o ritmo da agenda política, deixando o
impeachment em modo de espera. A sorte de Bolsonaro depende de como usará esse
tempo.
Luiz
Domingos Costa - professor de Ciência Política e integra o Observatório de
Conjuntura do Grupo Uninter.
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