A sensação de ficar sem ajuda é, primeiramente,
claustrofóbica. Tudo começa com uma incredulidade, um espanto com aquela nova
situação. Você diz pra si mesmo: não, não é possível. É lógico que eu vou
encontrar alguém pra me ajudar. Tenho vários amigos, eles vão compreender a
minha situação, amigo é para essas coisas. Uma mão lava a outra e, afinal, é
uma coisa passageira, em dois ou três meses eu que vou estar emprestando pra
eles.
Quando passa essa fase - e ninguém que você
esperava ajudou - vem a raiva, uma raiva profunda contra todos. Daí você diz,
ou pensa, pra poder dizer mais alto: "gente mesquinha, um dia vai
acontecer com eles e aí quero estar de camarote pra ver a cara deles; gente
covarde, nem pra vir me falar, manda o filho dizer que não está, desliga o
telefone, inventa desculpas e depois sai com a família no carrão pra jantar
fora. Nunca mais quero falar com eles. Não preciso dessas falsas
amizades".
Nesse momento, sem aviso ou convite, vem o
desespero. É a parte mais asfixiante. Você já gastou a reserva de emergência, o
gás tá no fim, as crianças pedem isso e aquilo, a prestação da escola já venceu
há dez dias, o condomínio, a luz. Você se olha no espelho e pergunta: e agora?
Toma banho, põe a melhor roupa e vai atrás de um fiapo de esperança que é uma
indicação de um conhecido de um conhecido de um cara que precisa de alguém para
um serviço rápido, quem sabe. Mas você sabe que não tem a qualificação para
esse serviço, vai lá para se humilhar e pedir uma chance. No fim da tarde você
volta e sabe que amanhã não haverá mais nada. É hora de começar a vender por
qualquer preço tudo o que tem e pagar as contas e ganhar um respiro. A vida,
definitivamente, deixa de ser a mesma. Você vai ter de queimar sua caixa de
ferramentas para aquecer a noite e amanhã, bom, amanhã seja o que for.
Nesse estágio, começa um enrijecimento na percepção
das coisas. É como se a alma ficasse cinzenta e invadisse com essa cor toda a
forma de vida. Você ainda anda, come, fala, mas há uma perda definitiva de
substância afetiva, esperançosa. Você não crê que isso seja mais possível.
Agora, o contato é só com os aproveitadores, os pulhas, que compram seus bens
por um quarto do valor e ainda fazem cara de maria mãe de jesus, e pagam com
cheques de terceiros, dizendo: "é o que eu tenho, o cheque é quente, você
que sabe, é pegar ou largar". E você pega, já pensando que vai dar pelo
menos pra manter os meninos na escola por mais um mês antes de tirá-los de lá,
o condomínio que se lasque, a prestação do carro, quem sabe dá pra empurrar pra
frente, nem que venda por nada.
Na esquina, há um sem teto e agora você olha pra
ele com certa simpatia em vez da aversão dos bons tempos. Também os dois
moleques do semáforo, limpando os vidros dos carros e recebendo xingamentos,
“vagabundos”, “tirem as mãos do meu carro”, “marginais”, você sente uma certa
compaixão. Aquelas ideias que você adorava, de que quem quer consegue tudo na
vida e que você gostava de recitar nos encontros de domingo na frente do seu
cunhado pobretão; a máxima de que tudo o que você tem foi com seu esforço e que
nunca precisou da ajuda de ninguém que você esfregava na cara do sogro mão de
vaca (e que se recusou a ajudar de novo, lembrando da frase), tudo isso agora
cai por terra. Você chega no último estágio da sua transformação, que não tem
nome, não tem forma, você nunca sentiu uma sensação como essa. Você virou
aquele que você nunca olhou, nunca ajudou, nunca teve compaixão ou
solidariedade. Você agora é somente mais um brasileiro invisível.
Daniel Medeiros - doutor em
Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
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