Exemplares de Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas, em imagens de microscopia de fluorescência (foto: Marcelo Santos da Silva/Unesp)
Um fenômeno que normalmente é letal
para as células – a quebra da dupla fita que forma o DNA – parece ser
importante no ciclo de vida dos tripanossomatídeos, família de parasitas que
infecta humanos e causa doenças como as de Chagas, do sono e leishmaniose.
A hipótese foi levantada em estudo apoiado pela FAPESP e
publicado na revista Frontiers in Cell and
Developmental Biology. Se confirmada, pode abrir caminho para o
desenvolvimento de tratamentos mais eficazes que os atualmente disponíveis.
“O senso comum diz que as chamadas
quebras de DNA na forma de dupla fita são danosas para qualquer tipo de célula.
Mas, quando se analisa alguns tripanossomatídeos, vemos que isso não se aplica”,
conta o autor do estudo, Marcelo Santos da Silva,
pesquisador do Instituto de Biociências de Botucatu da Universidade Estadual
Paulista (IBB-Unesp).
As quebras
de DNA na forma de dupla fita são lesões normalmente fatais para as células,
causadas por uma ampla gama de condições. Podem ser geradas por complicações do
próprio organismo, como falhas ocorridas durante a duplicação do DNA ou na
tentativa de reparar a oxidação no código genético.
Também
podem resultar de estímulos externos, como alterações químicas causadas por
medicamentos ou por radiação ionizante – daí serem o mecanismo de ação de
alguns tratamentos antitumorais.
No artigo,
Silva faz uma revisão dos estudos existentes até o momento que mostram como os
tripanossomatídeos dependem do fenômeno, mortal em outras células, para
continuar seu ciclo de vida. Nenhuma dessas pesquisas, porém, se aprofundou na
importância das quebras de DNA para os parasitas – conhecimento que pode levar
ao desenvolvimento de novas terapias.
Diferentes funções
“O Trypanosoma brucei [causador
da doença do sono, prevalente na África], por exemplo, depende de um processo
em que um gene precisa ser trocado por outro para que ele escape do sistema
imune do hospedeiro. Em algumas populações desse parasita isso ocorre por meio
da quebra do DNA na forma de fita dupla. Assim elas conseguem driblar o sistema
imune e se perpetuar”, explica Silva.
Causador da doença de Chagas, que
afeta cerca de 10 milhões de pessoas principalmente nas Américas, o Trypanosoma cruzi é conhecido por se reproduzir de
forma assexuada.
Estudos nas últimas duas décadas, no
entanto, têm mostrado a existência de troca de material entre diferentes
linhagens de T. cruzi, o que pode indicar a
reprodução sexuada e o consequente aumento de variabilidade genética.
Para se
reproduzirem dessa forma, os parasitas se beneficiam da quebra do DNA em dupla
fita. Outra evidência dessa troca é que linhagens com material genético híbrido
possuem uma expressão maior de proteínas ligadas à quebra de DNA.
Por fim, os parasitas causadores de
leishmaniose – doença que pode apresentar as formas visceral ou cutânea,
causando diferentes problemas de saúde – são conhecidos por apresentarem
elementos repetidos no código genético. Essa característica é favorecida pela
quebra de DNA em dupla fita e ocorre, sobretudo, em condições de estresse no
ambiente e como forma de resistir aos medicamentos existentes contra as
espécies de Leishmania.
“São três
exemplos em que a quebra de DNA na forma de dupla fita parece beneficiar os
tripanossomatídeos em vez de prejudicá-los. A visão de que esse processo é
necessariamente danoso, portanto, precisa ser repensada, uma vez que pode ser
um caminho para realizar abordagens novas para compreender o ciclo de vida
desses parasitas e, quem sabe, realizar ações específicas para eliminá-los”,
aponta Silva, que atualmente investiga a fundo o fenômeno.
Essas três moléstias cujos agentes
foram alvo da pesquisa são algumas das 20 doenças tropicais negligenciadas
(DTNs), que afetam mais de 1 bilhão de pessoas no mundo. As DTNs são
caracterizadas pela ausência de tratamentos eficazes e por afetar
majoritariamente populações pobres (leia mais em: agencia.fapesp.br/35136/ e agencia.fapesp.br/37350/).
Veneno x remédio
Desvendar
como a quebra de DNA em dupla fita ocorre nos tripanossomatídeos pode abrir
caminho para o estudo de possíveis tratamentos para as doenças causadas por
eles. Atualmente, os medicamentos usados contra as moléstias provocadas por
parasitas são pouco eficientes ou causam muitos efeitos colaterais.
Dentre as
muitas moléculas testadas em laboratório atualmente que apresentam potencial
para se tornar novas drogas estão as fosfolipases, presentes nos venenos de
serpentes.
Em outro artigo,
assinado com uma equipe de pesquisadores de instituições do Brasil e da França,
Silva faz um apanhado dos estudos envolvendo as fosfolipases e diversas
famílias de parasitas. Além dos tripanossomatídeos, foram incluídos
helmintos, Toxoplasma e Plasmodium.
Helmintos são parasitas mais conhecidos
como vermes e respondem por boa parte das doenças tropicais negligenciadas. Já
o Toxoplasma gondii é o protozoário causador da
toxoplasmose (que não pertence ao grupo das DTNs) e pode atacar todos os
órgãos, causar infecção generalizada e diversas deficiências. Os plasmódios,
por sua vez, causam a malária e são predominantemente transmitidos por
mosquitos.
Uma série de serpentes já
teve suas fosfolipases testadas contra esses agentes, entre elas algumas
dos gêneros Bothrops, das jararacas, e Crotalus, das cascavéis, presentes no Brasil, revela o
estudo.
“Existe um
potencial muito grande a ser explorado para os venenos de serpentes. Uma
crítica que fazemos, porém, é que muitos desses trabalhos foram realizados com
as fases dos parasitas que infectam os insetos e não os humanos. No entanto, os
resultados dão uma boa ideia das possibilidades que essas moléculas oferecem. É
preciso continuar avançando”, afirma o pesquisador.
O trabalho teve apoio da FAPESP por meio de
projeto coordenado por Nilmar Silvio Moretti, professor da
Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp).
O artigo DNA Double-Strand Breaks: A Double-Edged Sword for Trypanosomatids pode
ser lido em: www.frontiersin.org/articles/10.3389/fcell.2021.669041.
Já a publicação Panacea within a Pandora's box: the antiparasitic effects of
phospholipases A2 (PLA2s) from snake venoms está disponível
em: www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1471492221001690.
André Julião
Agência
FAPESP
https://agencia.fapesp.br/fenomeno-que-normalmente-leva-celulas-humanas-a-morte-parece-ser-vital-para-parasitas-aponta-estudo/38260/
Nenhum comentário:
Postar um comentário