Mas talvez ainda
não tenhamos percebido a extensão da mudança
Por meio dos noticiários, acompanhamos no final do
ano passado, informações sobre mais uma “gripe asiática”. Parecia ser uma
dessas viroses que circulam em uma cultura que ainda nos parece esquisita, com
seus hábitos alimentares tão peculiares, exibidos na mídia. De fato, parecia
ser mais uma daquelas coisas que acontecem em um mundo à parte chamado China e
que se resolve por lá. O mistério, as notícias pela metade, os boatos e teorias
da conspiração tão próprios desta nossa época, retratados em centenas de canais
no YouTube, faziam tudo parecer tão longe... tão remoto...
Depois vieram as primeiras notícias da Europa, mas
ainda parecia que estávamos imunes: coisa do hemisfério norte que, certamente,
se resolveria rapidamente: afinal estava na Europa e alguém faria alguma
coisa...
Entramos no jogo quando o Brasil se viu torcendo
pelo resgate dos brasileiros que estavam em Wuhan, o primeiro epicentro da
então epidemia... era véspera de carnaval, aquela época do ano em que adiamos
pensar em problemas para ir às ruas “celebrar”, “brincar”, o que quer que isso
signifique. Ninguém ocupava espaço significativo na mídia para falar em medidas
protetivas.
Aí veio a confirmação de uma frase feita: “No
Brasil, o ano começa depois do Carnaval!”, quando tivemos notícias dos
primeiros casos, chamados de “importados”, ou seja, não eram “nossos”. Usando
uma expressão que só as pessoas mais velhas entenderão, foi ali que a “ficha
começou a cair”, principalmente entre as pessoas que viajavam para o exterior.
Pensando em tudo isso dessa forma, tenho a sensação
de que se passou um longo tempo: os últimos quatro ou cinco meses foram
intensos demais! Nossa rotina foi sendo bruscamente alterada e subitamente nos
demos conta que estamos em uma guerra, e que a guerra do nosso século
ironicamente não é tecnológica, não é espacial ou atômica como acreditaríamos
dentro do rumo que nossa história seguia. Nosso inimigo é elementar, básico e
tem o objetivo de todo ser vivo: sobreviver e se reproduzir.
Estamos em uma guerra que é de fato Mundial e sem
que seja possível, mesmo com toda tecnologia disponível, prever o que
acontecerá e sua extensão ao longo do tempo.
Nessa guerra, nós, profissionais da saúde, somos a
linha de frente. Somos aqueles que encaram o inimigo, que dia após dia buscam
reduzir as estatísticas fatais. Como qualquer soldado, cada um de nós conhece
sua missão e não tem medo da batalha. Cada um de nós reconhece o seu papel e
sabe o juramento que, com tanto orgulho, fez. Mas ainda como qualquer soldado,
esperamos entrar no campo de batalha com os equipamentos necessários para que
possamos ter nosso foco naquilo que nos motiva: salvar vidas!
Esperamos que nossos comandantes tenham planos
concretos e que saibam para onde nos guiam. Afinal, somos seres humanos, pais,
mães, avós e filhos de alguém. Queremos nos doar, e esperamos voltar para
nossas casas, para nossas famílias depois de cumprir nossa missão diária.
Vemos chegar às emergências pacientes assustados,
inseguros com o bombardeio de notícias nas mídias, que evidentemente temem por
suas vidas e pelo contágio, pelo coronavírus. Mas também temos pacientes que
sofrem de diferentes doenças e esperam contar conosco, que precisam de nossa
assistência e não sabem o que priorizar: seu problema crônico ou a preservação
quanto ao novo mal. Somos aqueles que precisam ajudar nessa difícil escolha.
Somos soldados, mas também somos médicos, e médicos
devem ser capazes de tratar e apoiar seus pacientes. Afinal, como disse o
ministro da Saúde recentemente, “Médico não abandona paciente”, e isso é mais
profundo do que muita gente pode pensar...
Neste momento, há pacientes em todo o mundo
morrendo pela COVID-19. É triste pensar que sem uma despedida de seus
familiares, sem esse carinho...
O olhar de desalento dos familiares e dos
pacientes, de carência mesmo, de alguém que espera ouvir notícias que não temos
como dar, vai nos assombrar como nossos fantasmas de guerra durante muitos
anos. Mas nós estamos e estaremos lá. Não como antes de tudo isso, não como
éramos, pois quem fomos, já não existe mais.
Dr. Julio Cesar Peclat de
Oliveira - Vice-presidente da Sociedade Brasileira de
Angiologia e de Cirurgia Vascular – SBACV
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