Já são décadas de crescimento
das ações e processos judiciais em que os pacientes acionam o Poder Judiciário
para ter o direito e o acesso aos serviços de saúde no Brasil. Os tribunais
passaram a ser uma extensão dos balcões de atendimento dos hospitais, clínicas
e operadoras de saúde, uma porta de acesso quase sem barreiras. O custo da
Judicialização para o país é estimado em R$ 10 bilhões por ano, quase 10% do
valor total dos recursos disponibilizados para a área.
Recente relatório encomendada
pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Poder Judiciário apontou um
crescimento de aproximadamente 130% nas demandas de primeira instância entre
2008 e 2017. A pesquisa, realizada com base em dados da Lei de Acesso à
Informação, identificou 498.715 processos em primeira instância, distribuídos
entre 17 justiças estaduais e 277.411 processos de segunda instância,
distribuídos entre 15 tribunais estaduais. Na segunda instância, houve um salto
de 2.969 processos em 2008 para mais de 20 mil em 2017.
Problemas com os convênios
foram a maior causa (30,3%) dos pedidos de processos relacionados ao assunto no
país. Outros assuntos levados ao Judiciário foram: pedidos de seguro em
saúde (21,1%), saúde pública (11,7%), tratamento médico-hospitalar ou fornecimento
de medicamentos (7,8%) e fornecimento de medicamentos (5,6%). Na segunda
instância, planos de saúde respondem por 38,4% e seguro, por 24,7%. Na primeira
instância, são saúde pública (23%), planos de saúde (22,8%) e seguro (14%).
O estudo também revelou que, em São Paulo, 82% dos processos se
referem a planos de saúde, tendo distribuído 116.518 casos nessa categoria. Já
no Rio de Janeiro, saúde pública é o principal entrave, com 35% dos casos. Em
Minas Gerais, a maior demanda judicial é pelo acesso ao tratamento
médico-hospitalar ou fornecimento de medicamentos, com 21%. E, em Santa Catarina, o tema mais
recorrente, com 28% dos casos, é o acesso aos medicamentos.
Segundo dados apresentados pelo
CNJ, o caso de maior relevo é o que envolve órteses e próteses, citados em mais
de 108 mil decisões de tutela antecipada em uma amostra de 188 mil. Claro que o
valor de órteses e próteses e o caráter de urgência algumas vezes associado à
sua utilização explicariam o elevado número de pedido de liminares; no entanto, chama atenção o fato de muitos
profissionais da saúde ganham mais pela indicação de certas marcas e tipos
desses materiais cirúrgicos.
Independentemente dos pedidos
irreais que alguns pacientes demandam ao Judiciário, esses números constatam
que a saúde no Brasil sofre os efeitos de uma má gestão política, econômica e
administrativa. É preciso mais que do que ações pontuais para que se resolva
ou, pelo menos, amenize a situação atual.
Não se pode olvidar que há também uma
cultura de favorecimento diretamente ao médico, seja por meio da prescrição de
medicamentos desnecessários com incentivos financeiros por fornecedores e
laboratórios, seja por honorários profissionais que o médico irá receber pelo
procedimento. Tem-se assistido ao desmanche de quadrilhas formados por
profissionais da saúde com escopo de fraudar o sistema de saúde quer público
que privado, por exemplo, ao prescrever medicamentos pela marca, em vez de
indicar apenas o princípio ativo.
O cenário é crítico e o sistema
de saúde está à beira de um colapso. Os pacientes brasileiros sofrem com a
falta de leitos, de atendimento de qualidade, com equipamentos decentes para
exames e diagnósticos, com o tempo de espera para cirurgias e procedimentos,
com a distribuição e o preço de medicamentos. Sem esquecer que a falta de
políticas de promoção à saúde, tal como tratamento de água e saneamento básico
colaboram para a indústria da doença.
A judicialização no setor é um
problema crônico, que parece um caminho sem fim. Há mais de uma década
discute-se a possibilidade de uma força-tarefa entre os operadores do Direito e
os profissionais da saúde para se resolver esta questão. Entretanto, enquanto a
política do Governo Federal não fizer sua parte, com ações, mudanças de gestão,
previsões de gastos e uma atenção especial aos hospitais públicos, o Judiciário
continuará servindo como porta de acesso àqueles que conseguem pagar advogados
para ter privilégios ou para serem colocados à frente nas filas de espera para
os diversos procedimentos da no SUS.
A cultura do cidadão de
entender a saúde como um direito de todos, de forma a que não se poderá suprir
apenas os interesses individuais também é essencial. Aquele que usa seu plano
de saúde para exames desnecessários ou judicializa para procedimentos e
medicamentos que nem sequer utiliza também colabora para o caos na saúde.
O Judiciário, por sua vez, tem
buscado formas de tornar mais rápidas e adequadas às decisões, por exemplo, o
CNJ propõe aos magistrados julgadores que se utilizem dos NATs (Núcleos de
Apoio Técnico), os quais disponibilizam fundamentos técnicos para auxiliar os
juízes na tomada de decisões das demandas relacionadas à saúde. Mister
que sempre esteja presente o fundamento de que os recursos financeiros para a
saúde são findos, isso em qualquer parte do mundo.
Enquanto o Ministério da Saúde
e o Palácio do Planalto não fizerem sua parte, com ações, mudanças de gestão,
previsões de gastos e uma atenção especial aos hospitais públicos, o Judiciário
continuará servindo como porta de acesso àqueles que conseguem pagar advogados
para ter privilégios ou para serem colocados à frente nas filas de espera para
os diversos procedimentos da rede SUS.
Sandra
Franco - consultora jurídica especializada em direito médico e da saúde,
doutoranda em Saúde Pública, presidente da Comissão de Direito Médico e da
Saúde da OAB de São José dos Campos (SP) e membro do Comitê de Ética para
pesquisa em seres humanos da UNESP (SJC) e presidente da Academia Brasileira de
Direito Médico e da Saúde –drasandra@sfranconsultoria.com.br
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