Pedro tem 45 anos, filho único, casado, pai de três
filhos. Seu pai morreu com a mesma idade por causa desconhecida. É um executivo
de sucesso que acaba de fechar um novo negócio magnífico, que exigiria total
empenho pessoal. Após saída com colegas para uma comemoração, amanheceu com
náuseas, vômitos e indisposição. Procurou um médico que, após alguns exames,
diagnosticou insuficiência renal terminal, causada por doença policística. A
partir de agora dependeria de terapia renal substitutiva, que consumiria em
torno de 20 horas semanais para o tratamento de hemodiálise. Pedro se
desesperou e, para piorar, descobriu que a doença é hereditária. Seria sua
culpa transmitir uma doença dessas aos seus filhos? – Pensava ele. Ao perguntar
como poderia mudar isso tudo ouviu: “Somente com um novo órgão, uma família
doadora e um transplante renal podem devolver a vida que você tinha antes”.
Em seu primeiro dia em hemodiálise, conheceu vários
pacientes. Um mundo doente que não pensava existir. O que mais chamou sua
atenção foi uma garota - Maria, de 2 anos - que devido a uma má formação do
trato urinário evoluiu com insuficiência renal crônica e necessidade de
tratamento dialítico. “Tão jovem! A doença não escolhe idade” - pensou ele.
“Mas ela pode realizar um transplante, resolveria o problema?” perguntou Pedro.
Mais uma vez ouviu a mesma resposta: “Depende de uma família doadora”.
Desafios
Em seu segundo dia de tratamento, observou uma
correria da equipe médica, entusiasmada com a possibilidade de um doador em
potencial: um jovem de 23 anos, vítima de acidente automobilístico, quando
retornava para casa após sua formatura em medicina. Apresentara morte
encefálica.
A Central de Transplante informou os médicos que a
família estava inconsolável pela tragédia e que era uma deselegância os
abordarem naquele momento tão delicado. Além disso o jovem médico nunca tinha
comentado nada sobre doação. Ele perdeu a vida e pessoas perdiam a oportunidade
de serem curados. “Por que as pessoas são tão egoístas?” - questionava um
membro da equipe. Ouviu como resposta: “As pessoas não conhecem uma a outra na
intimidade ou em todos os seus desejos, não paramos para pensar em nosso
momento final”.
Outro grande problema dessa doença é que ela exige
tratamentos especializados e de alto custo. Apenas 7% dos municípios
brasileiros possuem centros de tratamentos. Pacientes fora desse circuito
morrem sem diagnósticos ou sem tratamentos ou viajam dezenas de quilômetros
para conseguir sobreviver.
Insuficiência funcional de um órgão é mais comum
que imaginamos
Insuficiência funcional de um órgão pode variar de
intensidade e é chamada de terminal quando a função desempenhada por esse órgão
é incapaz de atender a necessidade do organismo. Nesse momento é preciso
iniciar uma terapia substitutiva como a hemodiálise ou transplante, no caso de
uma insuficiência renal, por exemplo.
Casos como do Pedro e da Maria são mais comuns do
que imaginamos. A prevalência de doença renal (número de casos em uma determinada
população) gira em torno de 6% somente no Brasil - quase 10 milhões de pessoas,
número que aumenta cerca de 10% a cada ano. São mais de 1,5 milhão de pessoas
realizando tratamento dialítico no mundo, sendo em torno de 113 mil no Brasil,
o que não representa 0,5% da população. Infelizmente o restante morre antes de
ter o diagnóstico ou porque não conseguem acesso ao tratamento, por falta de
vagas ou por habitar em um local distante de um centro de tratamento.
Somente com esses pacientes, o Ministério da Saúde
gasta em torno de 4 bilhões de reais em tratamento dialítico por ano no Brasil.
Apesar dos custos elevados, a hemodiálise sozinha não é suficiente e necessita
de terapia medicamentosa de apoio, o que pode aumentar em até 50% esse custo.
Transplantes e seus problemas
O transplante é a forma de tratamento mais eficaz,
próxima ao natural e de menor custo para substituir a função de um órgão ou
tecido que está incapacitado de desempenhar sua função adequada. Um fator
significativamente negativo é a falta de doadores disponíveis devido a não
doação familiar.
São dois tipos de doadores: vivos ou falecidos. O
primeiro apresenta maior dificuldade relacionada à vida do doador (trabalho,
provedor familiar), além do risco que, apesar de baixo, existe. O doador
falecido é a fonte doadora ideal em um tratamento com órgãos sólido.
A lista de espera de receptores de rim representa
mais de 15 vezes o número de órgãos ofertados anualmente. No Brasil, mais de
70% dos transplantes, a partir de doador falecido, ocorreram nas regiões Sul e
Sudeste do País. Em 2018, o número de vítimas de mortes anuais violentas e de
trânsito ultrapassou os 100 mil. No mesmo período, somente três mil doadores
falecidos foram ofertados por suas famílias.
Atualmente, após o diagnóstico de morte encefálica,
a equipe médica informa compulsoriamente a Central de Transplantes, que explica
à família o processo de doação e consulta se a mesma é doadora de órgãos. Não
há nenhuma retribuição financeira ou qualquer outro privilégio. Na doação, serão
realizados procedimentos de retirada dos diversos órgãos e doados para qualquer
lugar do Brasil, gratuitamente. Após a retirada dos órgãos e tecidos doados, o
corpo do doador é devolvido à família para continuidade dos procedimentos
funerários.
Muito pode ser feito
A negativa das famílias muitas vezes é fruto de uma
incerteza sobre o desejo do possível doador, sobre o que é doação, o que é
transplante e o entendimento de que todos podem, a qualquer momento, ser
necessitados e/ou beneficiários de um órgão doado. Mais de 60% das famílias de
possíveis doadores, após serem abordadas, negam a doação devido às incertezas
ou por nunca terem conversado sobre o assunto ao longo de sua convivência.
As possibilidades dos “Pedros” e das “Marias”
retornarem às suas vidas depende apenas de um “sim” de uma família em algum
lugar. Tudo pode voltar a ser quase normal apenas com uma decisão de amor ao
próximo.
Fernando
Vinhal - membro da equipe de transplantes no Brasil
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