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domingo, 9 de outubro de 2022

A essência humana, a existência humana

Às vezes sentimos medo; em certas situações sentimos um medo pânico. Em estado de grande medo entramos em Síndrome de Emergência de Cannon. O corpo adapta-se para fugir ou lutar. Aliás, isso, de fuga ou luta, na natureza, é análise de conveniência, não disposição moral. 

Interessa dizer que o corpo faz uma recomposição de emergência, digamos, por conta própria, à revelia da consciência: pupilas se dilatam, o sangue se concentra nos grandes músculos, o coração acelera, a ventas nasais se abrem, mais glicose, mais velocidade de coagulação.

 

Já viu o gato do desenho animado quando leva um susto e fica todo eriçado? Pois ficamos igual, até nossos pelos se eriçam quando o estresse alcança essa importância. O organismo concentra as energias disponíveis em processos que o auxiliarão a ter uma resposta motora eficiente.

 

No cérebro mais primitivo, o hipotálamo, componente do sistema límbico, que é o controlador do sistema emocional, transmite um impulso que passa pelo tronco encefálico e pela medula espinhal, provocando uma descarga simpática global, desencadeando todos esses eventos.

 

Tudo isso é programação genética. Acontece e pronto; a vontade não incide no processo. Às vezes indago-me sobre o quanto guardamos dessas “condições selvagens”. Quero dizer: quanto do nosso comportamento diário é comandado por esses processos meramente bioquímicos?

 

Desconhecemos o quanto estamos sob a condução do “piloto automático”, mas nos tempos de vida na selva ele era a única garantia de sobrevivência. Em condições selvagens, quando compúnhamos a cadeia alimentar, a consciência não tinha mais importância do que o instintivo.

 

A ciência mais voltada à natureza humana é a biologia evolutiva, seja, a Teoria da Evolução, Charles Darwin. Mas há mais em nós que acontece sem que tenhamos participação nas causas do acontecido. Você já ficou enrubescido\a? Vexou-se de ficar vermelho\a, perder a ação?

 

Vergonhas não elucidadas. Acanhamo-nos, às vezes, em situações que para as demais pessoas é de plena normalidade. Algo em nós cuja origem não identificamos atua sem que nossa consciência dê conta de controlar. Esse algo está no que Sigmund Freud nomeia Inconsciente.

 

Inconsciente em definição de dicionário: “sistema do aparelho psíquico constituído por conteúdos recalcados, nos quais se desenrolam processos dinâmicos que contribuem para determinar a vida consciente” (Houaiss). Note: é vida inconsciente que controla a consciente.

 

Que conteúdos costumamos recalcar? Aqueles que produzimos na contramão de valores sociais relevantes, trazidos a nós por aparelhos ideológicos, como a família, a escola, a religião, os meios de comunicação. São discursos de certo e de errado que nos fornecem material moral.

 

Significo moral: “cada um dos sistemas variáveis de leis e valores estudados pela ética, caracterizados por organizarem a vida das múltiplas comunidades humanas, diferenciando e definindo comportamentos proscritos, desaconselhados, permitidos ou ideais” (Houaiss).

 

Não suportamos contendas subjetivas com a moral dominante que nos foi discursada e que nos formatou ideologicamente. Para Karl Marx, ideologia é a totalidade das formas de consciência social que produz, legitima e reproduz o poder da classe dominante. Restamos enredados.

 

Ideologias são explicações dogmáticas do mundo que nos alcançam por meio de discursos postos em circulação por quem tem poder. Conforme o rigor com que os assimilamos, mais nos acabrunhamos quando temos desejos que os contrariem, na vida íntima ou em situação pública.

 

Então, será que estamos no controle? Não somos nossos donos; no máximo, somos gerentes de um complexo de variáveis incidentes sobre um corpo. Gerenciamos ímpetos genéticos, vida inconsciente que nos compulsa e ideologias que abonam nosso lugar no mundo.

 

Muitas coisas compõem o conjunto que somos: a vontade genética é imperativa; os conteúdos recalcados são inibidores; os pressupostos ideológicos formam nosso mapa valorativo mental. Jean-Paul Sartre acredita que apesar de tudo isso damos conta disso tudo.

 

Sartre crê que o indivíduo humano não se define pela sua natureza genética, que seria meramente a biologia do animal que evoluiu; acredita que há em nós um “quarto escuro” infantil, mas que não justifica nada; que se pode elucidar em face das ideologias, tomando posição.

 

Sartre afirma que responsabilizar a genética, o inconsciente ou as ideologias é má fé, um escapismo. Pensa que estamos lançados no mundo como somos e, sofrendo e inventando a História, temos que dar conta da nossa condição, fazendo escolhas diante das adversidades.

 

Se pautados pela natureza, teríamos essência, então, não faríamos História; os humanos variaram da condição natural. Variados da natureza, existimos. Nos humanos, a existência (o correr da vida) precede a essência (atributos padrão). Gerencie, pois, com saber e arte, o existir.

 

Léo Rosa de Andrade

Doutor em Direito pela UFSC.

Psicanalista e Jornalista.


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