A urbanização brasileira ocorrida ao longo do século XX foi parte do processo de expansão do capitalismo que produziu profundas desigualdades socioeconômicas entre trabalhadores e trabalhadoras de baixa renda, a maioria mulheres e homens negros, e os membros das classes com média e alta renda. Inevitavelmente, tais desigualdades aparecem também nas condições de vida e nos bairros de moradia dessas classes sociais brasileiras. Diante disso, é inegável a urgência de governar, planejar, gerir e regular as cidades brasileiras com o objetivo de realizar as necessárias justiças socioespaciais e socioambientais nas escalas locais, regionais e nacional. Isso significa que o Brasil não pode adiar a realização de processos que materializem cidades onde todas as pessoas, sem exceção, morem e vivam em segurança nas terras e localizações urbanas que:
-
Tenham boas provisões de diversos sistemas de serviços, equipamentos e
infraestruturas que promovem acessos a todos os benefícios da vida urbana, os
quais fortalecem e viabilizam o desenvolvimento humano;
-
Possuam as condições ambientais saudáveis e seguras que compatibilizam as
convivências entre as dinâmicas e ciclos da natureza e os processos de
urbanização e nas quais as pessoas vivam sem estarem vulneráveis e expostas a
riscos, perigos e ameaças de vários tipos.
As
injustiças socioespaciais e socioambientais urbanas existentes nas cidades
brasileiras convivem com um paradoxo histórico que contrapõe, de um lado, o
fato irrefutável de que a maioria da população brasileira, aproximadamente 86%,
vive em cidades e, de outro lado, o fato, também irrefutável, de que há
inexistência total de processos de governo, planejamento, gestão e regulação
urbana que cumpram devidamente suas obrigações de formular e implementar
devidamente as políticas públicas capazes de distribuir para todos os cidadãos
e cidadãs, sem exceção, as condições adequadas e seguras de moradia,
mobilidade, acessibilidade, saneamento ambiental, lazer, vivências culturais,
dentre outros atributos inerentes à sociedade urbana.
As
efetivações das justiças socioespaciais e socioambientais urbanas exigem a
realização de esforços de curto, médio e longo prazos a serem levados a cabo em
diferentes processos de governo, planejamento, gestão e regulação das cidades
brasileiras e, por conseguinte, em diferentes âmbitos das políticas públicas.
Atualmente, é absolutamente necessário que esses processos sejam formulados e
implementados para enfrentar os impactos e consequências das ocorrências cada
vez mais recorrentes de tragédias urbanas relacionadas com os eventos extremos
decorrentes do aquecimento global e das mudanças climáticas.
Os
eventos climáticos extremos já são parte da realidade atual e se repetem
sazonalmente com intensidades e frequências crescentes e se manifestam
tragicamente em ondas de calor e estiagens prolongadas causadoras das
diminuições de volumes dos mananciais de água e, consequentemente, de
preocupante escassez hídrica, bom como em ciclones extatropicais, tempestades e
chuvas torrenciais que, diante dos problemas de macro e microdrenagens de águas
pluviais nos espaços urbanos, resultam em enchentes, inundações, alagamentos e
enxurradas. Nesse cenário, em muitos casos são acompanhadas por deslizamentos
de terras em encostas de morros e rolamentos de rochas que destroem bens
materiais e provocam mortes.
A
associação entre esses eventos climáticos extremos e as persistentes injustiças
socioespaciais e socioambientais urbanas resultam nas rotineiras tragédias e
desastres que, desse modo, devem ser vistos como produtos da ação humana.
Diante desses eventos, os processos de governo, planejamento, gestão e
regulação das cidades brasileiras devem formular e implementar políticas, planos,
programas, projetos, ações e investimentos de prevenção, remediação e atuação
emergencial orientados para o enfrentamento daquelas tragédias e desastres ao
mesmo tempo em que realiza as justiças socioespaciais e socioambientais nos
espaços urbanos. Isso precisa ser feito nas articulações entre as escalas
locais, regionais e nacionais. Para isso, é absolutamente necessário que tais
processos deixem de priorizar os interesses políticos partidários de indivíduos
ou grupos restritos e não se deixem pautar por interesse privados de grupos
sociais privilegiados que detém poderes políticos e econômicos.
Neste
século XXI, é extremamente importante avançarmos na definição clara das
responsabilidades dos diferentes entes da federação, bem como na implementação
das legislações existentes concernentes a diferentes componentes do
desenvolvimento urbano. É de suma importância induzir processos de governo,
planejamento, gestão e regulação das diversas cidades brasileiras de modo que
compromissos sejam assumidos e decisões políticas sejam tomadas para atender
prioritariamente as necessidades sociais, principalmente dos setores da
sociedade de baixa renda que vivem em situações de vulnerabilidade. É
fundamental mobilizar os sistemas universitários e de pesquisas meteorológicas,
geológicas, hidrológicas, urbanísticas e ambientais, dentre outras, para que
produzam conhecimentos, mapeamentos e instrumentos científicos, tecnológicos e
técnicos capazes de subsidiar três tipos de medidas: preventivas, de remediação
e de emergência.
As
medidas de prevenção evitam a contaminação, perdas e desperdícios de água, bem
como previnem o surgimento de assentamentos urbanos em áreas com riscos
hídricos e geológicos, dentre outros. As medidas de remediação corrigem as
situações de vulnerabilidade em que pessoas vivem expostas a diversos tipos de
riscos, perigos e ameaças. Já as medidas de emergência alertam e protegem as
pessoas em situações de tragédias e desastres iminentes e, logo após
ocorrências, devem reduzir danos materiais e humanos.
Coordenadas pelas diferentes instâncias dos poderes públicos, as medidas de prevenção, remediação e de emergência devem ser adotadas conforme metodologias participativas que envolvam democraticamente toda a sociedade. A experiência histórica já nos ensinou que autoritarismos, negacionismos e improvisos irresponsáveis destroem e matam. Portanto, aproveitemos as aprendizagens proporcionadas pela história para trabalharmos pela realização das justiças socioespaciais e socioambientais nas cidades brasileiras.
Anderson Kazuo Nakano - arquiteto, urbanista e
demógrafo, professor do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp).
Nenhum comentário:
Postar um comentário