Banco de gametas congelados deve garantir a
sobrevivência de espécies em caso de extinção; uma série de artigos científicos
deve ser publicada em 2021 com as descobertasFoto: Enrico Marcovaldi
Um
projeto pioneiro no sul da Bahia está desenvolvendo uma tecnologia
inédita no Brasil para criar um banco de gametas congelados de corais
e, assim, preservar espécies da extinção. Desenvolvida pela Rede
de Pesquisas do Instituto Coral Vivo, com apoio da Fundação Grupo Boticário de
Proteção à Natureza, a iniciativa usa técnicas de criogenia e de
reprodução assistida para garantir que, na eventualidade de um evento extremo
que leve à extinção dos corais, eles possam voltar à natureza pelas mãos da
ciência.
Os efeitos das mudanças climáticas e o consequente
aumento da temperatura do oceano têm colocado em risco a sobrevivência dos
ecossistemas formados por esses animais, um dos mais importantes para a
biodiversidade marinha. Cientistas estimam que metade dos recifes de coral do
planeta já morreram e o prognóstico para o restante não é dos mais otimistas.
Se nada for feito para conter o aquecimento global, mais de 90% deles poderão
estar em crítico risco de extinção até 2050, de acordo com um relatório da
World Resources Institute (WRI).
“A cada ano, a mortalidade nos recifes de coral
fica mais intensa. A ideia do projeto é trabalhar propostas para contra-atacar
essa destruição e criar ferramentas que garantam a perenidade das espécies
diante de um cenário em que o oceano está cada vez mais quente”, diz o
coordenador técnico do projeto, Leandro Cesar de Godoy.
Especializado em biotecnologias aplicadas à reprodução de organismos aquáticos,
ele é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e um dos
poucos cientistas no mundo que estudam a criogenia (conservação da vida em
baixas temperaturas) com foco na conservação dos corais.
A pesquisa se divide em duas partes: o congelamento
de gametas – que são as células sexuais dos corais (espermatozoides e óvulos) –
e a fecundação artificial em laboratório. O objetivo é conhecer detalhes dessas
células e desenvolver protocolos de congelamento, descongelamento e reprodução
específicos para cada espécie de coral. Inicialmente, os estudos estão sendo
feitos com a Mussismilia harttii, uma espécie de coral que existe somente no
Brasil.
“Temos no país cerca de 40 espécies de corais de
águas rasas. No entanto, os corais pétreos, que são aqueles que formam
esqueleto de carbonato de cálcio, são apenas 17. Dentre esses, há quatro
espécies de corais-cérebro pertencentes ao gênero Mussismilia que são os
principais construtores dos recifes da costa brasileira. A espécie M. harttii
foi escolhida também porque já se encontra na lista de espécies ameaçadas de
extinção”, explica Godoy.
A técnica desenvolvida no projeto é aliada à
proteção da biodiversidade. “A preservação do material genético das espécies,
sejam de corais ou não, e a formação de um banco de gametas, é uma das grandes
contribuições que a ciência pode dar à natureza. Conforme percebemos que mais
espécies se aproximam da extinção, com certeza isso vai criar uma maior demanda
para essa técnica, que tende a se popularizar cada vez mais”, prevê a
coordenadora de Ciência e Conservação da Fundação Grupo Boticário, Marion Silva.
Coleta de gametas
A Mussismilia harttii é uma espécie hermafrodita –
ou seja, o mesmo indivíduo produz os óvulos e os espermatozoides –, com pico
reprodutivo entre os meses de setembro e novembro. É nessa janela que os
pesquisadores vão a campo, no litoral sul da Bahia, e coletam exemplares do
animal. Estes são levados para viveiros da Base de Pesquisa do Coral Vivo, onde
são mantidos nas mesmas condições do mar até que deem início ao processo de
desova.
A reprodução dos animais está associada à fase da
Lua Nova. Dessa forma, os pesquisadores conseguem estimar, com certa precisão,
quando será feita a liberação dos gametas. Eles são lançados pelos corais
dentro de invólucro (como uma cápsula) de cerca de 1,5 centímetro de diâmetro.
Cada um desses “pacotinhos”, como chama Godoy, contém bilhões de
espermatozoides e centenas de óvulos.
Após a coleta dos gametas, as colônias de corais são
devolvidas ao recife, nos mesmos locais de onde foram retiradas. “A pandemia
atrapalhou muito, pois todas as atividades em laboratório foram paralisadas.
Essa é uma espécie que se reproduz num período específico do ano. Não ir a
campo, portanto, significa quase um ano sem trabalho”, conta o
pesquisador.
Diferentemente dos espermatozoides humanos, que são
móveis no trato reprodutivo, na maioria dos organismos aquáticos eles só
conseguem se movimentar quando entram em contato com a água. No entanto, uma
vez lançados no mar, sua sobrevivência depende de acharem um óvulo da mesma
espécie para realizar a fecundação – e essa é uma corrida contra o relógio.
De forma geral, espermatozoides de peixes marinhos
conseguem viver de 15 a 20 minutos após entrarem em contato com a água. Algumas
poucas espécies resistem por uma hora. Porém, os pesquisadores descobriram que
os gametas masculinos dos corais podem sobreviver até 22 horas, algo sem
precedentes. “É uma descoberta muito surpreendente e que mostra como a evolução
foi imprimindo características muito específicas nos corais do Brasil. E
estamos descobrindo características que são únicas aos gametas desses corais”, destaca o
pesquisador, observando ainda que, no caso da Mussismilia
harttii, esse tempo é de 16 horas.
Congelamento
Assim que são colhidos pelos pesquisadores, os
gametas são congelados em nitrogênio líquido, a -196°C, e levados para a UFRGS,
em Porto Alegre. É lá que Godoy e sua equipe começam a desenvolver os
protocolos de descongelamento dos gametas, numa dinâmica similar à montagem de
um quebra-cabeça. De cada um daqueles pacotinhos com bilhões de
espermatozoides, cerca de 30% sobrevivem até essa etapa.
Isso porque os cientistas não podem simplesmente
pegar o material biológico e colocá-lo em baixa temperatura, pois, assim como
os seres humanos, os corais são compostos em grande parte de água e, ao serem
expostos a temperaturas abaixo de 0°C, invariavelmente são formados cristais de
gelo. Se um cristal de gelo – que é pontiagudo e irregular – se forma e cresce
dentro de uma célula, ela morre. Para evitar este desfecho, são usadas
substâncias conhecidas como crioprotetores, que entram nas células e invadem os
espaços ocupados pela água, reduzindo o ponto de congelamento e a possibilidade
de formação de cristais. Esse trabalho começa a ser feito já no Arraial D’Ajuda
EcoParque (BA), onde fica a base do Coral Vivo, antes de os gametas serem
imersos no nitrogênio líquido.
Contudo, Godoy conta que os crioprotetores têm um lado positivo e outro negativo. “Ao mesmo tempo que eles têm esse benefício, também são substâncias tóxicas. Então, nosso trabalho é achar o tempo de exposição ideal das células aos crioprotetores e a dose correta. Por isso, a construção dos protocolos é um processo longo”, conta o coordenador do projeto. “O objetivo é achar a fórmula ideal que, quando eu descongelar os gametas, eu tenha a maior quantidade possível de células vivas e intactas. É como se a célula tivesse parado no tempo”.
A reprodução in vitro
No laboratório, os pesquisadores retiram os gametas
do nitrogênio líquido e iniciam o processo de descongelamento, que é igualmente
crucial para a pesquisa, já que os cristais de gelo também podem se formar
nessa etapa de manipulação do material. Assim, tão importante quanto
desenvolver protocolos de congelamento é desenvolvê-los para o descongelamento
– sempre com o objetivo de preservar a maior quantidade possível de células.
Com o material biológico em temperatura ideal, são
utilizadas técnicas de microscopia eletrônica e de fluorescência que
possibilitam aos pesquisadores analisar a saúde dos gametas em nível molecular,
permitindo a escolha das melhores células para a reprodução in vitro. A
reprodução é feita em provetas – tubos de vidro alongados – onde os gametas
masculinos e femininos são injetados para que se encontrem e formem um embrião,
dando origem a uma larva. Eventualmente, após o processo de metamorfose essa
larva se transformará em um jovem coral (recruta). Embora o projeto ainda não
tenha chegado nesta etapa, é possível no futuro que esses bebês corais criados
em laboratório sejam utilizados em outras pesquisas e também possam ser levados
a habitats naturais para ajudar na recuperação de recifes degradados, sobretudo
de espécies em declínio populacional.
“Os trabalhos do Leandro Godoy dentro da Rede de
Pesquisas do Coral Vivo já estão mostrando indícios de sucesso na fertilização
in vitro de gametas preservados – e isso vai ter implicações muito grandes para
a conservação. Além disso, estão mostrando que os gametas dos corais brasileiros
são bastante singulares em relação a espécies de outras partes do mundo. Então,
acho que ainda teremos muitas novidades importantes nessa linha de pesquisa”, afirma
Miguel Mies, coordenador de Pesquisas do Projeto Coral Vivo.
Ciência nova
A criobiologia ainda é uma ciência nova. A primeira
vez que conseguiram congelar uma célula com sucesso foi em 1949, em um centro
de pesquisa agropecuária da Inglaterra. Inicialmente, sua aplicação era focada
em animais domésticos, como bovinos, aves e suínos, como forma de garantir
linhagens de sucesso. Ao longo do tempo, ganhou aplicação em toda a indústria
agropecuária e, paralelamente, hoje é usada na reprodução humana. Todas as
clínicas de reprodução assistida no mundo trabalham com técnicas de
criopreservação. Entretanto, pesquisas com reprodução de corais in vitro a
partir de gametas congelados ocorrem apenas no Brasil, Taiwan e Estados Unidos,
com a primeira tentativa em 2006, no Havaí.
Todas as descobertas feitas
pela equipe devem ser publicadas em uma série de artigos científicos ao longo
de 2021, ajudando na construção de protocolos eficientes de criopreservação que
poderão, inclusive, serem usados como referência para pesquisas de outras
espécies. Além disso, a pesquisa também conta com um canal de comunicação com a
sociedade civil, por meio do Instagram @projetoreefbank_. Há ainda a previsão
de lançamento de um jogo voltado a crianças e adolescentes que estimule a
educação ambiental.
Fundação Grupo Boticário
Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN)
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