Em
"A sociedade aberta" do Jornal do Brasil, lemos o eminente
professor Dalmo de Abreu Dallari tecer considerações técnico-jurídicas sobre o
impeachment da Presidente Dilma Roussef, considerar, à luz de rigoroso
positivismo, improcedente a proposta supostamente advinda do PSDB, partido
derrotado que não saberia perder.
Em
1970, sob a triste opacidade da ditura militar, ganhamos bom ânimo na Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo ao frequentar as imperdíveis aulas do
professor Dalmo. Seu pensamento era capaz de motonivelar a esburacada selva em
que se encontrava desbussolada a ciência do direito naquele templo democrático.
Os jovens do primeiro ano do curso de bacharelado, que recalcitravam em
insistir num estudo superior desprovido do mínimo romantismo, ganhavam força
sob o ritmo ousado das profundezas corajosas daquele pensamento. A
tendência de víboras acadêmicas de massacrar o mestre era tão acentuada
que os alunos se mobiiizaram para assistir e testemunhar sua defesa de
tese na busca da cátedra que não poderia deixar de ser sua, como efetivamente
foi.
Mas,
lamentavelmente, tivemos dois Dalmos de Abreu Dallari. Um anterior e
outro posterior a seu ingresso no PT. Nada contra a filiação, nomes de
grande envergadura intelectual e sólida construção ética, como o Professor
Dalmo, ingressaram na sigla da esperança "contra tudo o que
estava aí". Porém, não conseguimos nos convencer da procedência de
sua posição de manter-se em sentido após a contundente frustração
política que o Partido dos Trabalhadores imprimiu à consciência dos
brasileiros, maxime depois das eleições da última primavera.
A "terrível"
palavra impeachment está na boca do povo e não no sussurro dos perdedores
inconformados, com disse o professor. Seu significado está em que nosso
povo não se sente suficientemente energizado para suportar por quatro anos
um franco engodo eleitoral. Às vítimas, é evidente o tormento maior
proveniente dos crimes continuados. Se o mandato foi obtido por meios de torpes
ardis - e quem o diz é o povo pesquisado - o tempo há de se libertar da
prevista e longa duração de um mandato, sob pena de o homem não dominar o
tempo, mas tornar-se escravo do tempo inimigo, como dezenas de renomados
filósofos se exauriram de dizer.
Logo,
professor Dalmo, não se trata de ver, como um juiz ortodoxo que atua em
grau jurisdicional de restrita independência, se a superação do tempo é
limitada ao impeachment, ao art. 85 da Constituição do Brasil e às leis
tipificadoras dos crimes de responsabilidade. Trata-se de interiorizar
ontologicamente o tempo, para miimizar o cansaço, as desventuras e as
descrenças dos brasileiros, cujos efeitos trágicos para a nação são muito
previsíveis.
Deixar Kelsen
e Bobbio de lado e pensar um pouco em Bergson.A cronologia não representa a
verdadeira manifestação da temporalidade, para sabermos quando termina o
humano e quando começa o inumano. "Imaginem o alívio trazido pela
descoberta de que o tempo não mais para de passar, corroer, aumentar, o
"time is money" ao qual estamos submetidos inexoravelmente, que nos
angustia, que nos devora, o "cronos ensandecido" (título do
livro de Sérgio Pipas), que nos aflige e nos falta, enfim, esse tempo do século
XXI é uma imagem ilusória!", segundo extrai Débora Morato Pinto
das lições do filósofo francês Henri Bergson.
Como
se sabe, o debate sobre o tempo é imemorial e nevrálgico entre os pensadores.
Aristóteles, com sua argúcia incomum, percebeu que o passado é só memória, o
presente é fugaz e, realizado, se converte em passado, e o futuro é
imprevisível (mas pode ser acautelado e criado). Kant negou o tempo
objetivo e remeteu sua dimensão às garras apreensoras da inteligência
humana.
Neste
ponto reside o ponto crucial da questão. O povo brasileiro, que tem ciência e
consciência de que foi enganado, ralado em sua pele durante toda a história,
pode pacientemente aguardar quatro anos e ver o pais, a cada momento,
precipitar-se num abismo sem volta? Em homenagem ao direito positivo, que,
segundo as advertências teóricas que recebemos do senhor, é necessariamente
dinâmico, mutável e não estático?
A
contagem do tempo sem nos ferretearmos à cronologia, uma das criações de nossos
cérebros privilegiados, vem de longe na história dos neurônios humanos. "A
Abraão disse Deus que seus descendentes serviriam aos egípcios quatrocentos
anos, sendo que serviram cem somente, porque o trabalho dobra e redobra o
tempo, e cem anos de servir são cem anos de padecer" (Padre Antônio
Vieira, "Sermão do mandato"). Nos presídios, uma dia de trabalho
reduz outro na contagem da pena.
Não
podemos permanecer por um quadriênio no interior da vala sem saída em que fomos
postos pelo atual governo. Em um ano, haverá tempo para que o povo e seus
representantes no Congresso Nacional deem corpo material e normativo a estas
proposições. São multiplas as fórmulas constitucionais espalhadas pelo mundo.
Não se justifica que fiquemos apegados a velhas regras, imutáveis no mais
amplo sentido reacionário, o que nos deixa perplexos ante a história de
tão ilustre articulista.
Amadeu Garrido de Paula - advogado especialista em Direito Constitucional, Civil, Tributário e Coletivo do Trabalho
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