Tenho atendido muitos pacientes com o desejo de
ser "mais saudável". Eles costumam começar nossa conversa ou sentindo-se
orgulhosos porque se alimentam bem e fazem atividade física, ou culpados porque
não fazem nem um, nem outro. Esperam de mim o tapinha nas costas de
"Parabéns" ou o chicote intimidador do "Que vergonha…".
Por isso, ficam meio intrigados quando recebo
essas informações com certo "dar de ombros". Calma, não me entendam
mal. São informações importantes, sim. E hábitos saudáveis são grandes
determinantes de boa saúde. Mas tenho observado com alguma frequência pessoas
absolutamente saudáveis avaliando a saúde como "péssima". E as razões
são as mais diversas:
"Não fiz meus exames."
"Não vou ao médico há muito tempo."
"Não medito todos os dias."
"Não corro uma maratona."
"Estou com uma barriguinha chata."
Parece que, para se sentirem saudáveis, precisam
de uma validação médica (com consulta ou exames, ou ambos), ou de um estilo de
vida super fitness (ou ao menos similar ao da "blogueira do insta").
Eu poderia acabar o texto aqui e simplesmente
recomendar: "Relaxe um pouco. Confie mais em você. Não se cobre tanto.
Seja feliz". Mas eu correria o risco de ser mal interpretado e o leitor
poderia dizer: "veja só o médico da Sami, falando que ser saudável não é
bom". Então, antes de apresentar dados de estudos científicos, deixa eu te
apresentar dois mundos opostos:
Mundo 1:
Trafalgar Square, Londres, 2005, próximo ao
Parlamento britânico. Local tipicamente repleto de esculturas de homens
triunfantes. Eis que recebe uma escultura diferente: de uma mulher… e não qualquer
mulher, mas uma mulher grávida, completamente nua, sem mãos, sem pernas e um
olhar absolutamente altivo, orgulhoso e confiante.
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Imagem: John Winfield/Creative Commons ( Link ) |
Mundo 2:
Mulher, modelo, no topo da pirâmide do que
socialmente se considera como belo e deslumbrante, encontra-se com um charmoso
cirurgião plástico. Eles flertam, dormem juntos e, na conversa da manhã
seguinte, ela, que se atribuía nota 10 da perfeição, foi convencida de que não
passava de um 8… No espelho, estupefata, observa em seu corpo os rabiscos de
batom feitos pelo cirurgião para indicar os locais que "precisariam"
de procedimentos estéticos, e lamenta: "Eu sou assim tão feia?!".
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Imagem: Reprodução ( Link ) |
No Mundo 1 temos o caso real da artista britânica
Alison Lapper, que nasceu com Focomelia, uma má formação congênita causada pelo
medicamento Talidomida. Quando criança, foi abandonada pela família e viveu num
orfanato com outras pessoas afetadas pela mesma condição. Queriam torná-la
"normal", o que a fez até rejeitar uma prótese. Hoje artista renomada
e mãe feliz, ela comenta que "Normal é se sentir confortável com seu
corpo".
Já o Mundo 2 é de uma série de TV chamada Nip/Tuck
(ou "Estética", nome que recebeu no Brasil), que mostra a vida de
dois cirurgiões plásticos boa pinta. Sim, é fictícia, mas não nos causaria
tanta surpresa se fosse real, certo?
O contraste entre esses dois mundos deve gerar
discussões filosóficas riquíssimas e muito além da capacidade intelectual deste
simples médico que vos fala. Mas algo me chamou atenção no orgulho de Alison
Lapper, com focomelia, em se sentir normal e saudável. Ou seja, pensei, deve
ter algo de muito positivo no simples pensar dessa forma.
Percepção Subjetiva da Saúde
Eis que, revirando a literatura científica, vi
que existiam vários estudos que avaliavam a Percepção Subjetiva de saúde.
Ou seja, independentemente de quaisquer doenças que você tenha, como você
percebe sua saúde? A pontuação pode variar entre 1 e 4, sendo:
• Muito boa
• Boa
• Não tão boa
• Ruim
Acontece que tal percepção é um dos principais
preditores de como sua saúde será no futuro, como você usará serviços de saúde
e, pasme, tem até relação com mortalidade!
Um estudo norueguês, publicado em 2020, analisou
respostas de autoavaliação da saúde de mais de 20 mil pessoas, por 25 anos. E
publicou o intrigante gráfico abaixo:
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Lorem, Geir, et al. "Self-reported health as a predictor of mortality: A cohort study of its relation to other health measurements and observation time." Scientific reports 10.1 (2020): 1-9. ( Link ) |
Nele, temos 4 linhas coloridas. Quanto mais
íngreme é a "queda" dessas linhas ao longo do tempo, menos pessoas
estão vivas ao fim do período. E quanto menos íngreme, mais pessoas estão
vivas. Em outras palavras: as pessoas que avaliaram a própria saúde como
"muito boa" (linha laranja) morreram menos. É óbvio, você poderia
dizer. Mas o ponto crucial aqui é que isso persistiu mesmo quando outras
variáveis objetivas de saúde foram ajustadas.
Agora, reflita comigo: como você acha que Alison
Lapper avaliaria sua saúde? E a modelo do Nip/Tuck? Eu suspeito que
ambas começariam na linha laranja do gráfico, porém, após a intervenção do
cirurgião, a modelo cairia para as linhas mais íngremes
Paradoxo da Saúde
Eis o paradoxo da saúde: apesar de termos
avançado muito nos últimos anos em longevidade, com melhores condições de vida
e tecnologias diagnósticas e terapêuticas, a percepção da saúde das pessoas tem
diminuído.
É como se estivéssemos nos sentindo super belos e
confiantes e saudáveis, como a modelo do Nip/Tuck, e o sistema de saúde
agisse como o cirurgião plástico bonachão, ou seja, ressignificasse nossas
próprias percepções, fazendo com que nos sentíssemos feios, inseguros e
doentes.
Qual a implicação prática disso? Mudar de linha
num gráfico obscuro? Não! A implicação é viver menos e pior. É irônico rirmos
do absurdo que é a situação da modelo deslumbrante se sentir feia, mas
replicamos o mesmo absurdo no que tange a nos sentirmos saudáveis ou não.
É claro que a avaliação médica tem seu papel na
saúde, mas acredite: mais de 80% das pessoas são absolutamente saudáveis. A
questão que se impõe é: precisamos ser ainda mais saudáveis? Se sim, ao
custo da própria saúde?
Médico Mascote da Saúde x Médico Bruxo
Por essas e outras, tenho pisado um pouco no
freio com meus pacientes sobre esse foco excessivo em ser "mais
saudável", trabalhando mais com sua autoconfiança e autocompaixão. E tem
sido ótimo, simplesmente porque assim se evita a ansiedade provocada pelo
médico "Mascote da Saúde" - aquele que cobra X litros de água por
dia, Y horas de sono, Z passos por dia e faz o paciente sentir vergonha de
voltar caso não tenha "batido" alguma meta pactuada.
Hoje, não. Hoje, com essa ansiedade de lado,
sobrou tempo para conhecer a pessoa que está na minha frente: o que gosta, com
quem vive, com o que sonha… Não vou deixar piegas esse texto, não, prometo. Mas
se eu te contasse como todo santo dia tenho conhecido e atendido pessoas
incrivelmente interessantes, talvez você também desse de ombros se apenas
escutasse sobre "informações de saúde".
É assim que a "bruxaria" acontece: O
paciente julgado a vida toda pelo peso, absolutamente desmotivado após tantos
Mascotes da Saúde na sua cola, retorna certo dia comentando: "estou
pensando em retomar atividade física, doutor, o que acha?".
Dr. Alexandre Ceotto
Calandrini (CRM 191481) - paraense com orgulho. Coordenador e médico do
primeiro Time de Saúde da Sami, é formado pela Escola Paulista de Medicina da
Universidade Federal de São Paulo, fez residência em Medicina de Família e
Comunidade por São Bernardo do Campo. Especialista em Melhoria da Qualidade
pelo Institute for Healthcare Improvement (IHI), em curso, e com
experiência de pesquisa pelo Institute of Development Studies (IDS),
Harvard e Cebrap.