Há tempos o Brasil lembra a época das capitanias hereditárias, período em que os donatários e seus familiares tinham todos os direitos e privilégios enquanto os demais - quase totalidade da população - vivem como vassalos condenados a uma existência de necessidades e modernamente chamados de classe D e E. Isso nos remete à histórica frase de Karl Marx, segundo a qual “a história repete-se sempre, pelo menos duas vezes, a primeira como tragédia, a segunda como farsa”. O Brasil de hoje vive uma situação lastreada em mentiras e atos corruptos dos donatários do século XXI.
É triste, porém verdadeiro. Nossa nação parece
condenada a assistir sempre à repetição que já nos tirou do mapa do
desenvolvimento socioeconômico e humano e nos levou ao atraso de mais de 30
anos. Um ciclo nefasto que somente será rompido com uma ampla e inadiável
reforma.
Uma mudança de rumo, entretanto, difícil de se enxergar no horizonte, a se
julgar pelo momento que vivemos e pelos primeiros sinais do governo
recém-empossado. Até agora, o esforço dominante foi para obter de R$ 160 a R$
180 bilhões para gastos extras, ignorando-se que isso significa contrair mais
dívidas bancárias, ao custo de mais de R$ 20 bilhões anuais em juros. Nenhuma
menção a metas de redução de desperdícios e de privilégios e ao combate efetivo
da corrupção em todos os níveis.
Também não foi firmado nenhum compromisso com a
redução do déficit fiscal brasileiro, da ordem de 9% do PIB, o correspondente à
cifra de R$ 900 bilhões a R$ 1trilhão/ano. Pelo contrário. Para acomodar,
aglutinar e, claro, recompensar os líderes políticos e partidários, será
necessário onerar ainda mais o orçamento, elevando o já gigantesco custo da
máquina pública por meio de brutal incremento do número de ministérios, que
passaram de 23 para 37. Uma engenharia política com efeito colateral, a
“Alegria dos Suplentes”, candidatos que assumirão o parlamento com a convocação
de nove deputados federais e sete senadores eleitos para Ministério, onde
ocuparão 43% das cadeiras.
Não é demais lembrar, ainda, que o novo governo
apoiou e negociou a alteração da Lei das Estatais para permitir que políticos,
até então impedidos pela lei vigente, pudessem ser nomeados, e remunerados com
os maiores vencimentos do serviço público. Com isso, mais de 587 cargos de
diretoria e conselhos das estatais e agências reguladoras serão
disponibilizados para aqueles antes sob vedação, inclusive os que atuaram em
função partidária na eleição de 2022. Tudo graças à redução da quarentena de
três anos para apenas 30 dias. E, como se não bastasse, a alteração incluiu a
elevação, de 0,5% para 2%, do percentual da receita bruta anual das estatais
disponível para ser utilizado em despesas publicitárias e de propaganda. Ou
seja, as estatais poderão gastar quatro vezes mais nesse segmento,
independentemente de seus resultados financeiros, já que a mudança não faz
qualquer vinculação aos lucros.
O Brasil caminha por estradas tortuosas há décadas
e não tem mais tempo a perder. Somente uma reforma política pode evitar a
perpetuação do desastre. É premente rever o instituto da reeleição, proibindo a
recondução no Executivo e garantindo um mandato maior do que o atual, de forma
a possibilitar a conclusão dos programas de governo.
Tal reforma, entretanto, não será eficiente se não
for proibida a formação de chapas para o Senado, para os governos estaduais e
para a Presidência da República com familiares dos candidatos figurando como
suplentes e vices. É preciso também aumentar o período de quarentena para
membros do Judiciário e do Ministério Público que deixam o cargo para se
candidatarem a cargos públicos.
Para coibir o “toma-lá-dá-cá” e a “farra dos
suplentes”, a reforma poderia limitar (talvez a 10%) a nomeação de
parlamentares para Ministérios, Secretarias de Estado ou Secretários de
Municípios, ou exigir que parlamentares renunciem aos cargos se quiserem ocupar
pastas no Executivo.
A ética e a moralidade recomendam, ainda, que os
cargos de diretores e conselheiros de empresas estatais somente possam ser
ocupados por ex-presidentes, ex-governadores e ex-prefeitos após o cumprimento
de quarentena de 10 anos, contados do fim do cargo eletivo. Além disso, os
membros dos Tribunais de Contas da União, dos Estados e dos Municípios deveriam
ser escolhidos exclusivamente por meio de concurso público.
Para aprimoramento da democracia, a reforma deveria
abranger a exigência de ficha limpa para os cidadãos que desejem se filiar a
algum partido político, condição estendida a candidatos a cargos públicos
eletivos do Executivo e do Legislativo.
Um país com falta de recursos para investimento em
setores básicos precisa redimensionar os Fundos Partidário e Eleitoral,
estabelecendo limites financeiros compatíveis com a realidade da Nação e
definindo novos critérios de distribuição, tornando-os mais democráticos e
transparentes, ao contrário de hoje, em que os dirigentes de partidos gozam de
enorme poder graças à esfera discricionária de distribuição de recursos. O
ideal, ainda, seria que coligações e federações partidárias somente fossem
homologadas mediante a apresentação de programas de governo e/ou de metas,
atualmente ignorados.
Em outra esfera, é necessário também estabelecer
limites ao Poder Judiciário, sem tolher sua autonomia constitucional, mas
vedando a manifestação fora dos autos e a concessão de entrevistas sobre temas
ainda não transitados em julgado, bem como reduzir as decisões monocráticas
O Brasil segue sem aprender lições milenares como a pregada por Marco Túlio
Cícero desde antes do nascimento de Cristo: “O orçamento nacional deve ser equilibrado, o
Tesouro Público deve ser reposto, a dívida publica deve ser reduzida, a arrogância
dos funcionários públicos deve ser moderada e controlada e à ajuda a outros
países deve ser eliminada para que Roma não vá à falência. As pessoas devem
novamente aprender a trabalhar, em vez de viver às custas do Estado.”
Pelo contrário. Ninguém se compromete em acabar com a reeleição nem em combater
efetivamente a corrupção, mal antigo que onera e envergonha o país, arruinando
o sonho das futuras gerações. A leniência com que a questão é tratada e os maus
exemplos transmitem a imagem de que não vale a pena estudar e trabalhar porque
o crime compensa. Vivemos, lamentavelmente, uma degradação moral, na qual o
crime é tolerado e até incentivado. Tudo em contrariedade ao que nos era
ensinado no passado, quando se aprendia que ser ladrão não é apenas não roubar,
mas também não deixar ninguém roubar e entregar os ladrões à Justiça.
Não haverá evolução, não existirá aprendizado se o país insistir nos mesmos
erros em vez de corrigi-los, e se os brasileiros continuarem acreditando em
discursos fáceis e sem profundidade, iludindo-se com a promessa vã de que as
soluções para tudo serão trazidas por um ou outro político. Patinaremos na
construção de uma nação verdadeira se nossos cidadãos seguirem votando em quem
fala o que queremos ouvir, e não o que precisamos fazer.
Convém meditarmos sobre o que ensinou o economista e filósofo político
norte-americano Thomas Sowell: “Quando as pessoas querem o impossível somente os
mentirosos podem satisfazê-las".
Samuel Hanan - engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”. Site: https://samuelhanan.com.br
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