Há alguns anos o Netflix lançou uma série chamada “Thirteen Reasons Why”, ou, em tradução livre, “As Treze Razões”. Houve muita polêmica e muito bafafá em torno da série, que contava a história de uma menina, Hanna Baker, que se suicida e manda fitas cassete (fitas cassete? Como assim?) para treze pessoas que teriam levado a menina a tirar a própria vida. As pessoas foram confrontadas com as decepções e angústias que levaram a personagem a tirar a um beco sem saída. Foram disponibilizadas hotlines e terapeutas de plantão para prevenir os Cluster Suicides, ou Suícidios em Série que o exemplo de Hanna Baker poderia provocar. Escolas marcaram reuniões e grupos de apoio foram montados nas redes sociais, esperando pela tormenta que não veio. Não houve uma corrida às lojas para comprar fitas cassete ou gravadores, até porque não acho que seria possível. Não houve listagem de abusadores ou abandonadores acusados de desencadear atos suicidas. O tema foi estudado e descobriu-se que, de fato, enquanto houve a polêmica e pessoas se descabelando com o assunto, houve sim um aumento de tentativas e de suicídios em pessoas vulneráveis, não porque assistiram a série (assistir a série não provocou aumento de risco, pelo que me lembro), mas pela ênfase no assunto, o que criou um campo de indução de atos e pensamentos suicidas nessa sub população.
Eu assisti a primeira temporada da série, que foi
até onde consegui levar a minha curiosidade psiquiátrica. Era boba e
melodramática, mas Hanna Baker falou uma grande verdade quando estava tentando
escolher uma faculdade para si. “A gente passa dezesseis anos na Disney, aí
chegam e te falam: agora você é uma adulta e precisa decidir a profissão que
vai ter no resto de sua vida”. Concordo com ela. Não há um bom cuidado em nossa
cultura com as transições e períodos de mudança e crescimento, e cada vez tem
mais gente perdida no caminho. Em tempos de mundo virtual, então, temos
muita gente presa no mundo dos jogos online e das redes sociais, e a Realidade
como conhecemos deixa de existir. Hanna Baker se suicida antes de dar o passo
para sua vida adulta, com dores e decepções que a fazem desistir. Temos
milhares de jovens nem, nem: nem estuda, nem trabalha, nem p... nenhuma. Os
pais, educadores, terapeutas, famílias ficam com as mãos atadas sem saber o que
fazer, e essa omissão está cobrando um preço cada vez mais alto. Temos crianças
de nove anos se cortando e escrevendo bilhetes suicidas. O que temos que fazer?
Não sei ao certo, mas temos que fazer logo.
Como diria Hanna Baker, a Infância virou um grande
estágio na Disney. Tudo é um belo paraíso de brincadeiras e sonhos de consumo.
Pais trabalham cada vez mais para tentar atender os padrões de consumo impostos
pelo Tik Tok. A grande batalha que se travava na adolescência agora está se
deslocando para a pré Adolescência, onde as crianças sofrem uma pressão
darwiniana para ser popular, fazer dancinhas e receber clicks. A pressão pela
popularidade e aparência e, mais recentemente, uma discussão prematura sobre a
identidade e gênero, está tornando o início da puberdade numa travessia e
tanto.
O título deste texto deriva de uma música de Renato
Russo: “E há tempos, nem os santos/Tem ao certo a medida da maldade/ E há
tempos são os jovens que adoecem”. Os jovens manifestam os sintomas da doença
dos adultos. E a doença deriva do Individualismo. E do Coletivismo. Ficou
confuso agora?
Temos mais conforto e mais tecnologia que já houve
em toda a História. A Psiquiatria evoluiu cem anos nos últimos trinta, e as
pessoas estão cada vez mais infelizes, solitárias e os índices de depressão e
autoagressão não param de subir. Nicolau Maquiavel dizia que o melhor jeito de
governar era dividindo as pessoas. Essa lógica domina o nosso tempo. O
Individualismo é uma forma perfeita de criar pessoas infelizes, hostis e fragilizadas.
O Coletivismo vai na mesma direção. A necessidade de caber dentro da fôrma que
a cultura coloca vai deixando as crianças solitárias, medrosas e com pouca
capacidade de enfrentar as dificuldades. Temos o contraste da Disney que é a
nossa Infantolatria e a necessidade de manter as crianças numa espécie de
Infância Eterna, e quando a Realidade vem na forma de derrotas, brigas e
necessidade de cumprir tarefas, corrigir erros e aguentar a pressão, então
vemos as crianças mais vulneráveis, cortando as dobras do corpo com gilete e
escrevendo mensagens suicidas no Facebook.
A Infância precisa ser melhor cuidada. As crianças
(e os adultos) precisam se tratar da Adultofobia que perpassa nossa cultura.
Deixar a criança num mundo sem tarefas, sem exigências, sem LIMITES, leva ao
solavanco que a personagem de Hanna Baker descreve na série: ninguém me exigia
nada, agora preciso virar adulta na marra. Talvez a resposta esteja na própria
música de Renato Russo: “Disciplina é liberdade/Compaixão é fortaleza/Ter bondade
é ter coragem”. Vamos precisar de disciplina, compaixão e muita, muita coragem
para parar de empurrar essas questões com a barriga, esperando que os problemas
se resolvam sozinhos.
Marco Antonio Spinelli - médico, com mestrado em
psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiano
e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”
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