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quarta-feira, 3 de novembro de 2021

A transação individual tributária como instrumento para a continuidade dos negócios

Foram quase 2 anos de pandemia decorrente do COVID-19, e ainda estamos no limiar do abrandamento das infecções e dos óbitos, mas a economia ainda não tracionou nos moldes em que os especialistas previam. 

No aspecto econômico da tragédia, precisamos ainda nos preocupar com a situação catastrófica de muitas empresas que simplesmente fecharam ou estão à beira de fechar, muitas de forma irregular em razão da redução a zero do seu faturamento. 

No dia a dia do mundo jurídico nos deparamos com situações em que comércio e indústria (micro, pequenas e médias, principalmente) estão em situação de verdadeiro pós-guerra, sobreviventes de um terremoto devastador em termos econômicos. Tributos, que antes eram pagos em dia, ficaram em segundo plano e viraram inscrições em dívida ativa e execuções fiscais, acumulando juros, multas e encargos legais. 

Atualmente, o passivo tributário total em litígio é de 1,5 trilhão de reais, considerando União, Estados e Municípios, sendo que o índice de recuperação de tributos por meio das execuções fiscais não chega a 2%[1]. A progredir esse quadro, os contribuintes em pouco tempo não conseguirão garantir mais os créditos em execução para poderem se defender. 

Felizmente hoje já temos medidas de solução alternativa de conflitos tributários junto à Procuradoria da Fazenda Nacional, a qual possui várias modalidades, vale dizer, i) Negócio jurídico processual, ii) Arbitragem tributária e iii) Transação tributária. 

Especificamente sobre a transação tributária, que nos termos da Lei nº 13.988/2020 veiculou três modalidades de transação no âmbito federal: i) transação por proposta individual ou por adesão, na cobrança de créditos inscritos em dívida ativa da União, de suas Autarquias e Fundações Públicas; ii) transação por adesão no contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica e iii) transação por adesão no contencioso tributário de pequeno valor, aplicável a débitos que não superem 60 salários mínimos e que tenha como sujeito passivo pessoa natural, microempresa ou empresa de pequeno porte. 

No presente artigo, nos debruçaremos sobre a transação individual tributária que foi regulamentada pela Portaria nº PGFN 9.917/2020 e pode ser proposta pelo contribuinte ou pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), desde que os débitos negociados superem R$ 15 milhões (sobre esse ponto, dos valores, já existem precedentes judiciais determinando que transações com valores abaixo de 15 milhões podem ser realizadas). 

Ainda, nos termos da referida portaria, a Transação Individual das pessoas jurídicas pode: i) provocar a redução de até 50% do valor total dos débitos a serem transacionados; ii) viabilizar o pagamento do débito em até 84 meses. 

A Transação Individual das pessoas naturais, microempresas ou empresas de pequeno porte pode: i) provocar a redução de até 70% do valor total dos débitos a serem transacionados; ii) viabilizar o pagamento do débito em até 145 meses. 

Questão importante que poderia afastar, em tese, a análise das empresas em aderir à transação individual é a limitação do valor para fins de sua viabilidade, pois, a Portaria PGFN 9.917/2020, introduziu, à revelia da lei, um teto limitador do valor inscrito para que as empresas possam utilizar esse importante instrumento de solução do passivo tributário, na medida em que permitiu a adesão de empresas cujos débitos negociados superem R$ 15 milhões de reais. 

Ocorre que a Lei nº 13.988/20, que trata da transação tributária, em sua exposição de motivos é clara ao buscar a maior amplitude possível de abrangência do instituto com a finalidade de facilitar o recolhimento dos tributos de todos os contribuintes em situação de passivo tributário. A transação individual, aliás, muito mais do que as outras modalidades que possuem prazos determinados, deveria ser instrumento essencial de busca de alavancagem fiscal e de continuidade da atividade empresarial mesmo para aqueles devedores que possuem passivo inferior à 15 milhões de reais. 

Nesse cenário já surgem algumas decisões judiciais autorizando o contribuinte, com débitos inferiores ao limite infralegal estampado na Portaria PGFN 9917/20, a fazer uso desse importante instrumento e determinar que a PGFN aceite a análise da proposta, sob o fundamento de que a portaria da PGFN, quando limita o valor para a transação individual, extrapola a Lei do Contribuinte Legal (Lei 13.988/2020), vez que a indigitada lei não fixa um valor.

O sempre festejado Aliomar Baleeiro já admitia a transação em direito tributário dentro dos limites legais, nos seguintes termos:

 

O próprio art. 171 conceitua a transação, empregando o vocábulo no sentido jurídico, e não vulgar de negócio qualquer (...) mas com o mesmo conteúdo do art. 1.025 do Cód. Civil, isto é, de ato jurídico específico, no qual um litígio entre os interessados pode ser regulado e extinto mediante ajuste de concessões recíprocas.

Ato jurídico, porque modifica e extingue obrigações preexistentes, e não contrato – apesar de prestigiosas opiniões em contrário – porque não cria tais obrigações.

A autoridade só pode celebrá-la, com relativo discricionarismo administrativo, na apreciação das condições, conveniências e oportunidades, se a lei lh´o faculta e dentro dos limites e requisitos por ela fixados.

Tratando-se de ato, que exige critério elevado e prudência acurada, o CTN determina que a lei designará qual a autoridade competente para celebrar a transação em cada caso.[2]

 

Ives Gandra da Silva Martins segue na mesma toada: 

... a disposição do art. 171 faz clara menção à celebração de transação ‘mediante concessões mútuas’, o que vale dizer, há razoável discricionariedade na atuação da Administração, no conformar as condições da transação com vistas ao atendimento do interesse público. Porém, nada disso prevalecerá se não houver a encampação desses parâmetros – ou a fixação de outros – pelo Poder legislativo, passando a ser vinculada a atuação do administrador público ao receber crédito tributário pela forma transacionada, a partir da aprovação da lei.[3]

Além disso, qualquer limitação de valor trazida por norma infralegal se mostra atentatória aos princípios da isonomia tributária, da legalidade e da capacidade contributiva, na medida em que oferece condição especial (discrímen) que não se coaduna com os objetivos da lei que a fundamenta, bem com pode causar concorrência desleal entre contribuintes num mesmo setor econômico. Tal limitação de teto do valor para fins de adesão à transação individual, pode e dever se rechaçada pela via judicial, pois é fundamental que o contribuinte possua instrumentos para negociação dos seus débitos inscritos de acordo com sua possibilidade e realidade fiscal e contábil. 

A limitação do teto do valor para adesão à transação individual, também contraria o princípio da eficiência, voltado ao Estado e estampado no artigo 37 da Constituição Federal.   

Para Antonio Carlos Cintra do Amaral, “eficiência” da Administração Pública corresponde a uma obrigação de meio e não de resultado. Para o autor, “o princípio da eficiência, contido no “caput” do art. 37 de Constituição, refere-se à noção de obrigações de meios. Ao dizer-se que o agente administrativo deve ser eficiente, está-se dizendo que ele deve agir, como diz Trabucchi, com ‘a diligência do bom pai de família’[4]. 

O princípio da eficiência, do ponto de vista jurídico, não é somente uma obrigação de meio, mas também de resultado, de forma a que o Estado não só empregue os meios adequados, como também logre alcançar os fins pretendidos pela Constituição e pela lei. 

O princípio da eficiência, em seu grau máximo, estaria em consonância maior com o valor anglo-saxão do pragmatismo, no entanto, ele deve ser interpretado dentro da tradição romano-germânica, à qual o sistema jurídico brasileiro se filia, com uma amplitude mais limitada, nesse sentido a transação individual poderia ser aceita nos casos em que a cobrança do crédito seria abaixo do limitador da norma infralegal, como forma de dar aplicabilidade à eficiência e à razoabilidade da Administração. 

Ao negar acesso à tais contribuintes, a PGFN não se mostra eficiente (afronta o artigo 37 da CF e a razoabilidade), não aplicando a Lei, deixando o devedor à mercê do processo executivo fiscal e o fisco sem receber num prazo mais curto. 

Em verdade, a lei confere ao contribuinte a possibilidade de uma proposta que, se aceita, poderia abreviar todo o iter processual da execução fiscal, viabilizando arrecadação mais célere e eficiente para o erário, abrangendo um universo muito maior de empresas que teriam viabilidade fiscal e contábil para formular uma adesão individual, por isso, enquanto a norma infralegal não for alterada, caberá às empresas se socorrerem do judiciário com a finalidade de viabilizar a transação individual mesmo que tenham débitos abaixo de 15 milhões de reais e, com isso, transformá-la num importante instrumento de continuidade da atividade empresarial.

 


Caio Cesar Braga Ruotolo - advogado tributarista em São Paulo. Associado do escritório Silveira Law. Membro do Conselho de Assuntos Tributários da Fecomércio em São Paulo. Foi Coordenador Jurídico da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Foi membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/SP (2017/2018) e da Comissão de Assuntos Fiscais da CNI (2014-2020). Pós Graduado com Especialização em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional e em Gestão de Recursos Humanos. Experiência consultiva e contenciosa nas áreas de direito tributário, empresarial, ambiental, aeronáutico e crimes contra a ordem tributária.

 

 

[1] Pombo, Bárbara, in Luz no fim do túnel: a arbitragem e a transação tributária, http://jota.info/livros/luz-fim-tunel-arbitragem-e-transacao-tributaria-06022015

[2] in Direito tributário brasileiro, 10ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 575, g.n.

[3] in Transação tributária realizada nos exatos termos do art. 171 do Código Tributário Nacional, RDDT 148, jan/08, apud Paulsen, Leandro, Direito tributário: constituição e código tributário à luz da doutrina e da jurisprudência, 14º ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora; ESMAFE, 2012, p. 1158/1159

[4] http://www.direitopublico.com.br/pdf_14/DIALOGO-JURIDICO-14-JUNHO-AGOSTO-2002-ANTONIO-CARLOS-CINTRA-AMARAL.pdf


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