MEDO, MEU ÍNTIMO
Faz-se escasso; toma-nos. O Tempo é sovina com
a vida da gente. Conversar pede tempo, e nem sempre o Tempo nos dá tempo para
uma conversa desapressada, sem tempo de acabar. Na falta de tempo para
conversa, muitas vezes não ouvimos o suficiente, não dizemos o bastante. Somos
breves. Econômicos de tempo, não nos entregamos de todo, não recebemos tudo o
que alguém nos deseja dar.
Por falta de tempo, encaixamos nossos
sentimentos em mensagens, já não há cartas. Abstraímos dizeres, falamos catando
o necessário. Pois, em tempo, quero contar um estranho caso de rebeldia:
sentimentos estavam sendo impedidos de conversar, então, algo mais fundo se
revelou; uma expressão de certo afeto contido insurgiu-se e se narrou por
escrito. Tive a boa sorte de, escarafunchando uma vida, encontrar o que vai:
“Medo, meu íntimo,
É um tanto difícil, assim, dizer as coisas de frente. As palavras não surgem...
E não suporto a tua presença por muito tempo! Então, escrevo. Escrevo, pois
quero que me entendas, quero te dizer sobre mim. Tenho comigo que se realmente
me soubesses, tu não complicarias tanto. Talvez assim, Medo, não tenhas tanto
medo de mim!
Olha, eu sou aquilo que faz alguém se
encantar por tantas coisas de outro alguém. Tantas coisas... Qualquer coisa: o
jeitinho de se mexer, algum cheirinho aqui ou ali. É engraçado, sou também a
irritação com um detalhe, como a alergia a um cheiro acolá. Sim, tudo em uma
única pessoa. Nota, eu mesma me posso fazer cheiro, e como cheiro, aproximo e
distancio. Brinco com essas coisas; às vezes provoco tragédias.
Sabes o vinho? Também sou aquilo que
está no vinho e que entristece, e, enquanto entristece, alegra e até te faz
sair de ti. Sou isso que está no vinho, que aconchega e afasta os que o bebem!
Cada qual devaneia por si... Sabes um pedaço de gelo sendo feito correr pelo
corpo? Eu sou o desejo pelo arrepio que o gelo traz. E já mesmo ao arrepio de
frio, eu sou o desejo pelo calor que só acontece no encontro dos corpos. É, eu
sou o que funde os corpos, e sou o que releva as singularidades de cada corpo.
Há em mim umas coisas loucas! É que eu
sou a mão leve, suave, que te acaricia, e sou a mão que te apraza enquanto te
machuca. Sou mesmo aquilo que te faz fugir da mão, mas fuga de provocação, para
que ela vá ávida e forte ao teu encontro. É, eu sou essas contradições que
carregamos em nós! Olha só: sabes isso de um corpo ser desejado todo, e, rsrs,
uma parte deste corpo ser o todo desejado? Pois sou eu! E sou, entre dois, as
palavras. E, nota, palavras aproximam... E separam. Palavras falam e calam.
Sou bem simples, não? Sei, é verdade, é
meio complicado ser o que incomoda e refestela; ser o que faz temer e o que faz
tentação. Às vezes eu sou o ensaio de uma despedida, na desesperada tentativa
de pedir carinho, ou até de negar a saudade de quem atende desejos... Eu sou
mesmo complexa... Até complicada. Vê: sou um intermeio. Sou o que faz alguém,
sendo uma coisa, sentir que também é outra. Faço até com que alguém, sendo
isso, sinta vontade de experimentar como seria sendo aquilo.
Mesmo sendo Beleza, não sou bela nem
feia, sou gosto. Gosto é coisa variada. Sou cada gosto! Eu mesma me surpreendo.
E nunca estou, não sou encontrável, não sou afastável; apenas, simplesmente,
aconteço. Agora, eu sou uma coisa maravilhosa: eu faço com que o erotismo não
se reduza ao romantismo; estou depois do limite do romântico. Sou e aconteço
onde o romantismo falha e pede que venha o erotismo, que é mais, que transporta
do estado de gosto ao estado de sôfrega exaltação.
Começo a me despedir. Intuo que me
queres longe, porque me queres demais. Mas saibas que isso adianta pouco, pois
sou justamente o que transforma o dever de "não mais" em um relutado
"ainda mais". Todos sempre querem um pouco mais. Isso sou eu: esse
mais que queremos não querer. Eu brinco com o sempre adiar a saciedade. Hehehe,
eu tiro as certezas, não é? Ah! Eu sou, sempre serei, tua melhor companhia. Sem
medo, Medo, me responde, está? Te conta para mim. Beleza.
Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito pela
UFSC.
Psicanalista e
Jornalista.
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