Opinião
Para que uma companhia aérea possa operar no nosso
país, hoje, ela terá que se inteirar de uma infinidade de leis, decretos,
resoluções, portarias, dentre outros tantos regulamentos internacionais, a
depender da extensão da sua operação.
Existem, nada menos, que 17.442 regulamentos
nacionais editados especificamente para o setor aéreo, conforme informações
extraídas da Plataforma RegBR lançada pela ENAP – Escola Nacional de
Administração Pública. Em termos de resoluções editadas pela ANAC, agência
reguladora do setor, existem 519 resoluções, das quais permanecem em vigor 471.
O setor de transporte – aéreo e terrestre – é disparado o mais
regulado em nosso país.
Para o passageiro fica a impressão de não existirem
regras, o que fica evidente e sacramentado quando avaliamos a jurisprudência
dos processos judiciais e administrativos que envolvem companhias aéreas em
nosso país, já que grande parte das decisões ignoram as legislações especiais
sobre o tema e aplicam as regras gerais previstas no Código de Defesa do
Consumidor, indo de encontro ao que prevê nosso ordenamento jurídico quanto à
hierarquia das normas e a prevalência da legislação específica.
Um excelente exemplo disso é a questão envolvendo
as modalidades de passagens aéreas comercializadas. Vejam que, conforme
previsão e autorização regulamentar, temos bilhetes oferecidos pelas empresas
que não são reembolsáveis em caso de desistência da viagem, e justamente por
isso, eles são comercializados por valores mais baixos, já que possuem
condições específicas. Isso não exclui, por outro lado, que as companhias
apresentem outras opções de passagem, claro, com um custo mais elevado, mas que
preveem o direito ao reembolso em caso de desistência da compra.
O passageiro, aparentemente atento ao que vem
acontecendo no Judiciário, e com plena ciência de sua escolha, muitas vezes
opta pela passagem mais barata e depois bate nas portas da Justiça sob a
alegação de cláusula abusiva, em clara afronta à regra do pacta sunt
servanda, que cai por terra com o acolhimento da tese pouco
amistosa.
Na prática, agora quem define as sanções e
obrigações que deverão ser impostas às companhias aéreas é o Poder Judiciário,
que quase sempre acolhe o argumento do passageiro, reconhecendo uma abusividade
na condição daquele contrato, ignorando o amplo dever de informação cumprido
pelas empresas e alterando as regras de um relacionamento extremamente e
rigorosamente regulado. Ignoram, inclusive, que o passageiro escolheu, por
livre e espontânea vontade, e tendo total ciência das condições que lhe foram
apresentadas, contratar uma passagem sem possibilidade de reembolso, mesmo
inequivocadamente ciente dessa regra.
Ou seja, o que se vê aqui é uma intervenção abusiva
do Estado numa relação particular, prática que é vedada pelo nosso ordenamento
jurídico, que preconiza, por sua vez, a mínima intervenção do Poder Público nas
relações contratuais privadas.
A impressão que sem tem é que o Poder Judiciário
desconhece a complexidade da operação aérea e as especificidades do setor, bem
como protege o passageiro demasiadamente, criando a cultura de que o passageiro
“tudo pode”. Mas não deveria ser assim. Ora, as regras estão sempre dispostas
de forma clara e assertiva. Não há que se falar em desconhecimento, tampouco
abusividade, quando se oferecem diversas modalidades de passagem e o passageiro
opta por uma delas. A comercialização de modalidade de passagens aéreas sem
reembolso é prática comercial mundial de todo o setor, por diversos fatores, e
ela é inclusive benéfica para ambas as partes. Fato é que diminuir o valor da
passagem possibilita que mais pessoas tenham acesso ao transporte aéreo,
entretanto, isso parece ser desprezado por nossos julgadores.
E o que dizer das regras de no-show? O
posicionamento atual do STJ é pela abusividade da norma que autoriza o
cancelamento automático por parte da companhia aérea do trecho de retorno, quando
o passageiro não comparece ao seu primeiro trecho de viagem. Veja que essa
prática é regulada por normas específicas do setor aéreo, mas que não são
“aceitas” pelo Judiciário brasileiro. Tal entendimento acaba por interferir nas
regras de mercado, já que, ao repreender tal prática, se impede a
comercialização de passagens e, consequentemente, ignora os altos custos
envolvidos numa operação aérea e toda a sua complexidade e especificidade,
colocando em risco, inclusive, a viabilidade da operação.
O que se pede, apenas, neste caso, é que o
passageiro que decida não embarcar em determinado trecho de sua viagem, seja
por qual motivo for, avise a companhia aérea e, assim, ela manterá seu trecho
de retorno ativo. Mas para que avisar, já que basta bater as portas do
Judiciário que ele concederá, além do reembolso integral da passagem, juros,
correção monetária e, eventualmente, indenização por dano moral? O passageiro
não só é dispensado de cumprir regras, como é premiado com vultuosas
indenizações.
Percebe-se que o passageiro brasileiro já está
atento ao fato de conseguir tudo no Poder Judiciário, de modo que não segue
nenhuma regra e, ainda, é premiado, quase como em uma loteria. É vantagem, para
o passageiro, processar a companhia aérea em nosso país, mesmo que o
descumpridor das regras tenha sido ele próprio.
Um adendo interessante é o fato de o Brasil estar
entre um dos países mais custosos para uma companhia operar no mundo. Seja por
conta dos altíssimos impostos, seja pelo custo dos insumos, pesa contra nós o
volume gigantesco de ações judiciais que envolvem o setor. Aqui, tirando
raríssimas exceções, se despreza a Convenção de Montreal, em que pese sermos um
de seus países signatários. Culturalmente se protege o passageiro além da
medida, equiparando-o ao consumidor padrão de um mercado não regulado,
prolatando sentenças protecionistas, quebrando princípios básicos do direito e
instaurando uma verdadeira insegurança jurídica para quem decide investir e
operar em nosso país.
E aonde chegaremos com isso? Hoje temos apenas três
grandes companhias operando nacionalmente. Considerando a magnitude do nosso
território, não era para termos mais? O Brasil é um país continental,
extremamente turístico, de modo que, em tese, qualquer companhia deveria ter o
interesse de operar por aqui. Mas, por conta dos custos envolvidos na operação,
das excessivas regulamentações e do desprezo das normas internacionais e
nacionais específicas do setor, temos pouquíssimas opções. Quem perde somos
todos nós.
Sendo o setor aéreo um dos mais regulados no
Brasil, não há razão para se ignorar a legislação específica que regulamenta a
operação aérea. Regras devem valer e ser cumpridas por todos. Sejam
passageiros, sejam fornecedores, todos devem seguir a legislação, sem
distinção, antes que a escassez de companhias seja tão alta, que os custos das
passagens se tornarão acessíveis, apenas, para as classes mais elevadas, como
um dia foi a nossa realidade.
Não existe outra saída, é preciso que
representantes das empresas, dos passageiros, o Poder Judiciário e ANAC sentem
à mesa com urgência para realinhar os ponteiros e ajustar o curso das decisões,
respeitando as regulamentações nacionais e internacionais.
Renata Martins Belmonte -
líder de equipe da área de Recuperação de Créditos do escritório Albuquerque
Melo Advogados, graduada pela Universidade São Judas Tadeu e pós-graduanda em
Processo Civil pela EPD - Escola Paulista de Direito (SP).
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