Opinião
Ouvi esses dias a palavra “cringe” e aprendi que se trata de uma
discussão de jovens de 15 anos em relação a jovens de 25 anos e que o objeto do
debate são as condutas consideradas pelos primeiros como “vergonhosas”. Os
segundos se defendem afirmando que seus gostos são marcas identitárias e que
sentem muito orgulho delas. Aprendi também que as redes sociais bombaram por
causa desse confronto durante cerca de… três dias. No momento em que escrevo
sobre isso, o tema já não é relevante, como, de resto, parece que nunca foi.
Eu, no entanto, embarco com gosto no episódio e ponho-me a matutar: vivo
já perto dos sessenta anos, vejo-me como um terreno com várias camadas
geológicas superpostas, sem que pertença, como unidade, a nenhuma delas. Vi,
certa vez, esse recorte em uma pedra de milhões de anos e um amigo geólogo
explicou-me de que fase era cada uma delas. Vi as camadas e vi a pedra. Chamei
de pedra.
Esse é o ponto do meu ensimesmamento. Não sou mais a criança do final
dos anos sessenta, que ainda tem na memória o eco do pai gritando feito louco
depois do gol do Clodoaldo. Mas sou. Não sou mais o adolescente que vibrou com
o gol do Kempes, depois do bate-rebate com o goleiro e com os zagueiros da
Holanda, e com o delírio dos argentinos, cobrindo o estádio com papeizinhos
picados, tremendo tudo ao redor. Mas sou. Não sou mais o jovem professor que
dava aula na escola particular enquanto, na rua de trás, o carro de som chamava
os estudantes para irem às ruas e pintarem os rostos e tirarem o presidente
corrupto do poder. Bom, creio que meu ponto de vista já está demonstrado.
Incorporo, como um cavalo de várias entidades, muitos tempos e muitas
marcas dos tempos em mim, sem que eu deixe de considerar que sou eu mesmo, o
mesmo menino que ganhou um time de botão para brincar na varanda com os amigos
e, desde então, nunca deixou de torcer pelo time cujas carinhas estampavam as
pequenas rodas brancas feitas de osso por um artesão habilidoso cujo nome
gostaria de ter sabido para agradecer e compartir as alegrias de minhas
vitórias.
Na verdade, tudo isso me parece evidente e essa história de “cringe” soa
quase um apelo, um pedido de ajuda, como se a falta de atenção e,
principalmente, a falta de memórias das experiências não vividas ou não
percebidas, criasse uma sombra em torno da própria pessoa e impedisse que ela
se visse, se reconhecesse, não fosse pelo gesto repetido pelos outros, a roupa
usada pelos outros, a frase dita pelos outros, a música ouvida pelos outros e
nos quais ela, enfim, percebe que esteve ali e que, portanto, deve ser desse
jeito. Por isso, essa repulsa pelos gestos, roupas, frases e músicas dos outros
que não são os outros dele, da idade dele, da paisagem em torno dele. Trata-se
de um esforço de manutenção da identidade tão precária, tão fraquinha, que
pode, a qualquer momento, ser soprada pelo riso de alguém satisfeito com a sua
própria vida.
Disse, certa vez, Paulinho da Viola: “meu tempo é hoje”. Não tenho um
tempo, não sou de um tempo, não respondo por tempo nenhum. Por mim, viveria
ainda muitos tempos, porque acho bacana essas nuances todas e, se não uso todas
elas, não é por reprovação, mas por desmazelo com certos cantos da vida, certos
cômodos que visito pouco, mas não sem me recriminar por essa sovinice com a
minha própria possibilidade de estar no mundo.
Quem me falou do “cringe” foi uma amiga somente uns poucos
anos mais nova que eu. Ela estava indignada e proferiu palavras não muito
republicanas para os jovens que, pelo que entendi, achincalharam, entre outros,
a Sandy e o Júnior. “Como se hoje existisse coisa melhor”, reclamou exaltada.
Achei graça. E lembrei, de novo, do Paulinho da Viola.
Daniel Medeiros - Doutor em Educação Histórica
e professor no Curso Positivo.
danielmedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros
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