De acordo com especialista do CEUB, símbolos do paganismo e santos do cristianismo se misturam em festa que remete à fecundidade do solo
Tradicionalmente conhecidas como celebração das
colheitas, as festas juninas disputam com o Carnaval o posto de época mais
aguardada do ano no Brasil. Com datas que remetem aos santos juninos – Santo
Antônio (dia 13), São João (dia 24) e São Pedro (dia 29) –, essas festividades
são marcadas por muita música e dança, comidas e bebidas típicas, decoração com
bandeirinhas coloridas e fogueira. Scarlett Dantas, professora de História do Centro
Universitário de Brasília (CEUB), explica a origem das festas juninas, seus
significados e símbolos na história.
Confira entrevista, na íntegra:
Qual é a origem das festas
juninas e como elas chegaram ao Brasil?
SD: As “Festas Joaninas”, com essa nomenclatura, surgiram no período medieval, embora seus antecedentes remontem à Antiguidade, quando ocorriam festividades rurais e pagãs celebradas no solstício de verão, no hemisfério norte, a partir de 20 de junho. Estas festas estavam associadas aos eventos celestes e a influência destes no ciclo produtivo agrário. Nelas se manifestavam os desejos de bons tempos para as próximas plantações. Seus ritos eram oferendas para os deuses relacionados à fecundidade e fertilidade do solo (Tamuz e Isthar para os sumérios, Osíris para os egípcios, Adônis para os gregos e romanos, Astarte para os fenícios).
As celebrações permaneceram ao longo do tempo e
foram se adaptando a novas realidades culturais, perpassando o Império Romano
até sua fragmentação e sendo incorporadas na realidade do ocidente medieval e,
assim, associadas ao nascimento de São João Batista. Elas chegaram ao que hoje
entendemos como Brasil por meio da colonização portuguesa, iniciada no século
XVI, e foram uma das festas mais bem recebidas pelos povos nativos que aqui
habitavam.
Quais influências culturais e
religiosas moldaram as festas juninas ao longo dos anos? Como as festas juninas
evoluíram desde suas primeiras celebrações até os dias de hoje?
SD: No Ocidente, muitos dos rituais dos gregos e
romanos foram incorporados no período medieval por via romana, e isso valeu
para as Festas Juninas. Os rituais de fertilidade que honravam o deus Adônis e
a celebração do solstício de verão, envolvendo o uso de fogueira, água, ervas e
práticas supersticiosas, foram incorporados nas Festas Juninas medievais. Tudo
isso foi produto de um processo gradual de apropriação e representação
simbólica conduzida pelo discurso da igreja medieval, que assim transformou
vários rituais pagãos em rituais católicos, inclusive como instrumento
facilitador da cristianização. Assim, os símbolos dos festejos pagãos do
solstício de verão foram atribuídos à celebração do nascimento de São João
Batista.
Qual é o papel dos santos
populares (Santo Antônio, São João e São Pedro) nas celebrações juninas?
SD: Os santos populares Santo Antônio, São João e São Pedro são fundamentais nas celebrações juninas por suas associações com tradições de fertilidade, casamento e previsões, ligando práticas antigas a símbolos católicos.
- Santo Antônio: Conhecido como o santo casamenteiro, é invocado por moças solteiras que realizam simpatias para encontrar um marido. As práticas incluem colocar a imagem de Santo Antônio de cabeça para baixo, dentro de um copo, no congelador ou enterrá-la até o pescoço. Essas ações simbolizam o pedido desesperado por um marido, e o santo só é "liberado" quando o pedido é atendido.
- São João: Associado a adivinhações sobre o futuro marido, São João é celebrado com várias superstições. As moças costumam colher pimentas de olhos vendados para prever a idade e características do futuro marido, baseando-se na maturidade das pimentas. Segundo a tradição católica, São João permanece dormindo no dia de seu aniversário e a fogueira o acorda, permitindo que ele desça dos céus para abençoar as lavouras. Há ainda o costume de se banhar ou banhar a imagem de São João Batista antes de 24 de junho, remetendo ao relato bíblico de seu batismo.
- São Pedro: Celebrado no dia 29 de junho, São
Pedro é o padroeiro das viúvas e dos pescadores e é visto como responsável por
fazer chover. Sua festa marca o encerramento do ciclo das festas juninas, e ele
é homenageado por sua importância tanto na fundação da Igreja Católica quanto
na vida cotidiana dos fiéis, especialmente os que dependem da chuva para a
agricultura.
Como os elementos pagãos se
misturaram com as tradições cristãs nas festas juninas?
SD: Visando ampliar o número de fiéis e a cristianização
dos povos germânicos, a Igreja Católica buscou associar símbolos e figuras do
paganismo às práticas e aos símbolos e santos do cristianismo. Diversos
atributos das divindades pagãs foram associados a características dos santos
católicos, de modo a facilitar a conversão ao cristianismo. Desse modo, as
simpatias e superstições que ocorrem no mês de junho estariam relacionadas às
oferendas que antigamente se faziam às divindades pagãs. A utilização da
fogueira, as danças e banquetes foram mantidos, embora no discurso católico
ambos sejam atribuídos ao nascimento de São João Batista.
Quais são as principais
diferenças entre as festas juninas celebradas no Brasil e em outros países?
SD: A primeira delas é a da culinária típica, que se baseia em alimentos da cultura agrícola local. No Brasil, os pratos típicos se baseiam na cultura do milho, dos grãos e das raízes, enquanto em Portugal, por exemplo, é costume comer sardinhas assadas e, na Noruega, se comem salsichas grelhadas, cachorros-quentes, carnes e frutas defumadas.
No que se refere às danças e ao entretenimento, cada região adota danças folclóricas e músicas com características locais. Nesse caso, os festejos brasileiros podem ter tanto o forró, mais comum na região Nordeste, quanto o sertanejo, na região Sudeste e Centro-Oeste, além da apresentação da quadrilha. Em Alicante, na Espanha, costuma-se dançar ao redor da fogueira, queimando monumentos confeccionados em papel machê, desfiles e concursos.
Na Dinamarca, costumava-se confeccionar uma bruxa
com palha e pano e colocá-la para queimar na fogueira. Na França, na Fête de
Saint-Jean é ateada uma grande fogueira em homenagem a São João e se celebra
uma missa em sua homenagem. Em Quebec (Canadá), contudo, a festa tem uma
conotação mais patriótica e politizada, com a utilização de instrumentos de
sopro, acrobatas e bonecos gigantes homenageando figuras históricas da
província.
De onde vem a tradição das
quadrilhas e como ela se desenvolveu ao longo do tempo?
SD: No que se refere às danças, a mais difundida no
Brasil foi a quadrilha (quadrille), uma dança de baile originada na França no
século XVIII e que se tornou popular entre a aristocracia brasileira do século
XIX. Isso explica vários termos do francês que foram aportuguesados e que marcam
os passos da dança, como o “anarriê” (en arrière, para trás), “alavantú” (en
avant tour, para frente), “changê” (changer, trocar) e “balancê” (balancer,
balançar o corpo). Embora seja uma dança tradicional das festas juninas
brasileiras, existem concursos de quadrilhas por todo o Brasil e que ocorrem em
diferentes meses do ano.
Qual é a origem dos pratos
típicos das festas juninas e como eles variam de uma região para outra? Como as
influências indígenas e africanas contribuíram para a formação das festas
juninas no Brasil?
SD: Embora na Festa Junina se associe à fogueira ao nascimento de São João, tanto as populações nativas que habitavam o Brasil no momento da colonização, quanto os povos escravizados que vieram de diferentes partes da África, já tinham o costume de utilizar fogo em seus rituais ou de aplicar a técnica da coivara para trabalhar o solo. Contudo, é na culinária típica que vemos a grande influência das culturas indígenas e africanas.
A cultura do milho, comum entre os indígenas e muito
aperfeiçoada pelos escravizados, resultaram na confecção de iguarias como a
pamonha, a canjica, o milho cozido e o munguzá. O mesmo pode atribuído ao
pé-de-moleque, doce produzido com amendoim torrado e rapadura, muito consumido
entre árabes, que habitaram a Península Ibérica, e escravizados que vieram para
o continente americano. A cultura de raízes, comum entre indígenas e africanos,
resultou em pratos cozidos com mandioca, inhame e batata-doce e consumidos nas
noites frias.
Qual é o impacto das festas
juninas na identidade cultural brasileira?
SD: As festas tradicionais, em geral, transmitem costumes e crenças entre gerações, fortalecem laços sociais e políticos e remetem aos esforços coletivos para manutenção da comunidade. No caso da festa junina, elas celebram o trabalho dos camponeses e as relações produtivas (pensemos nas funções de plantar, colher, caçar e pescar e a divisão de tarefas), as relações de parentesco e incentivo a interações entre casais (lembremos da cerimônia de casamento, do correio elegante e da barraca do beijo). São festas populares e voltadas para a família.
Além disso, como qualquer festejo tradicional,
estão relacionadas com a história do país e dos povos que habitam e deram
contribuições para a cultura regional e nacional. Portanto, mesmo com variações
de músicas, danças e trajes entre as regiões brasileiras, as festas juninas
homenageiam um santo católico, embora permaneçam com elementos que remetem à
celebração dos que trabalham com a terra, maior fonte de alimento, e mesclem
culturas indígenas, africanas e europeias em um mesmo evento.