O ditado popular "prevenir é melhor do que remediar" reforça a ideia geral de que, com exames, os médicos são capazes de prevenir doenças ao realizar o diagnóstico precoce, e de que esse diagnóstico levará ao tratamento mais rápido, sendo estes eventos certos e sempre benéficos. Entretanto, na prática clínica este ditado não se aplica, já que são poucos os exames disponíveis que têm ao mesmo tempo capacidade de diagnosticar precocemente uma doença de alto impacto individual ou coletivo, que seja tratável, e cujo tratamento precoce leve à melhora da qualidade de vida e à diminuição das complicações desta doença. Vivemos há algumas décadas uma pandemia de exames desnecessários.
A realização de
exames durante as avaliações médicas é parte fundamental da prática clínica,
mas a lógica de seu uso nem sempre é compreendida por pacientes e, até mesmo,
por alguns profissionais de saúde. Pensando nisso, é importante refletirmos: o
que de fato é um exame e quais suas utilizações?
O que é um exame?
Na prática clínica,
um exame é muito mais do que um procedimento laboratorial ou radiológico. Um
exame é uma pergunta fechada para uma dúvida clínica.
Perguntas abertas
são aquelas que respondemos com liberdade, impossíveis de serem respondidas com
a simplicidade de um sim ou não. Um exemplo de pergunta aberta é um abrangente
"como você se sente?".
Já perguntas
fechadas são aquelas que podemos responder diretamente, com sim ou não, ou
utilizando as opções oferecidas. "Você sente dor ao urinar?" é uma
pergunta fechada e "sua dor é do tipo pontada, facada ou queimação?"
também.
Exames costumam ser
aplicados por dois motivos principais: para investigar uma suspeita clínica ou
para investigar preventivamente sinais de doença precoce. Um exame precisa ter
um motivo para ser pedido, já que o motivo aumenta a chance de acerto na
interpretação do resultado do exame.
As suspeitas
clínicas ocorrem quando a avaliação médica não é conclusiva sobre a origem de
sintomas e sinais presentes em uma pessoa, e o médico fica diante de uma
incerteza clínica. Diante dessas incertezas, pode-se lançar mão de exames para
tentar diminuir a incerteza e se aproximar de uma conclusão. Neste caso, os
exames realizados servirão para confirmar ou afastar suspeitas até um nível de
probabilidade suficiente para que se possa tomar uma decisão segura.
Check-up e Exames de
Rastreamento
Hoje em dia é muito
comum que as pessoas procurem por consultas médicas com o único motivo de
"fazer check-up". Nestas consultas, ao médico é solicitado que
indique a realização de uma bateria de exames, muitas vezes para dar
continuidade a um "programa" que já vinha sendo realizado
anteriormente, ou apenas para que veja o resultado desta lista infinita de
exames já realizada.
Até hoje, não há
evidências de que um exame clínico periódico (check-up) baseado no exame físico
e numa bateria de exames laboratoriais e radiológicos seja capaz de identificar
as pessoas com maior risco de adoecimento e pode-se afirmar que só existe
sentido no check-up caso este tenha como objetivo conhecer os hábitos, estilo
de vida, fatores de risco e vulnerabilidades do paciente. Assim, diante deste
conhecimento ampliado da saúde, cabe ao profissional de saúde ouvir atentamente
e conversar sobre as alternativas existentes e sugerir mudanças para se
alcançar o objetivo de viver melhor.
Um exame de
rastreamento é feito para uma pessoa dentro de um programa organizado de
diagnóstico precoce de doenças. Deve ser realizado em uma população bem
definida que será sistematicamente submetida ao exame, garantindo uma cobertura
mínima desta população para sua realização, bem como garantindo todas as etapas
de diagnóstico, tratamento, reabilitação e cuidados paliativos aos indivíduos
que participarem do programa. O exame de rastreamento é um filtro para
identificar na população assistida, aquelas pessoas que têm maior probabilidade
de ter uma doença. A pessoa com exame de rastreamento positivo não tem ainda o
diagnóstico da doença e deve passar à etapa seguinte, que é a realização de
mais exames diagnósticos. Estes exames diagnósticos são frequentemente
invasivos e com maior potencial de causar danos às pessoas, como tomografias,
endoscopias, biópsias, entre outros.
Para complicar ainda
mais a história, todo exame está sujeito a erros e acertos. Por isso, ouvimos
dizer que exames podem ter resultados verdadeiros e falsos, sejam positivos ou
negativos. Na maioria das vezes, os resultados falsos negativos são os menos
frequentes, seguidos dos verdadeiros positivos, depois dos falsos positivos e
por fim dos verdadeiros negativos.
Muitas são as
histórias sobre pessoas que se beneficiaram de exames que em princípio não eram
para terem sido feitos, dando credibilidade ao exame "desnecessário".
Isto se deve ao enorme impacto que um resultado verdadeiro positivo tem para a
história de vida e adoecimento de uma pessoa. Infelizmente, estes casos são as
exceções. Para cada uma dessas pessoas, haverá muitas outras que terão sido
submetidas a cascatas de exames e tratamentos desnecessários. Num contexto de
baixa probabilidade de doença como uma consulta de check-up numa pessoa jovem,
os exames acabam por produzir muito mais resultados falso positivos do que
verdadeiro positivos. Isso acontece mesmo com exames consagrados, como
mamografias e citologias de colo uterino. Uma mulher com mamografia de
rastreamento positiva para câncer de mama têm mais chance de ter uma biópsia
negativa do que positiva para câncer de mama: em torno de 1 em cada 10
mamografias positivas são confirmadas com resultados positivos de biópsias.
Os exames desnecessários
colocam em risco a saúde das pessoas não só porque levam a intervenções
desnecessárias, mas também porque têm enorme impacto psicossocial em quem
recebe um resultado positivo. Mesmo em exames recomendados com a mamografia
isso acontece. Muitas pessoas já conviveram com a angústia de uma mulher à
espera da realização e do resultado de uma biópsia de mama após o resultado
positivo de uma mamografia. É certo que o resultado negativo a seguir poderá
trazer um alívio, mas a que custo? Fazemos mal a alguém para que, tirando o mal
em seguida a pessoa se sinta bem?
Ajustes no corpo
Em outros casos, as
pessoas procuram realizar exames para saber seus parâmetros, como se cada
indicador bioquímico fosse um botão de uma mesa de som e o valor deste
indicador fosse o nível a que este botão estaria definido. "Diminui o
colesterol! Aumenta o zinco! Um pouquinho mais de testosterona! Isso aí, a
vitamina D tá ótima! Agora corta o sal!" Existem valores ótimos? A saúde,
o corpo-mente, é mesmo como uma música mixada em estúdio? Se a saúde é uma
música, deve ser uma tocada ao vivo, com instrumentos acústicos e com
participação do público e da natureza. Não há mesa de som que corrija um
instrumento mal tocado.
Está tudo bem
Sempre que me deparo
com resultados de baterias de exames fico admirado. Estatisticamente, a chance
de um único exame em uma pessoa saudável estar alterado é de aproximadamente
5%. Isso se deve porque a faixa de normalidade de um exame é definida pela
distribuição dos resultados do exame colhidos em uma população saudável. Toda
distribuição normal tem faixas de probabilidades, os desvios padrão. Exames são
considerados normais quando seu resultado está afastado a menos do que dois
desvios padrão da média, o que engloba sempre aproximadamente 95% (95,45% para
ser mais perto do exato) das pessoas. Então, pessoas saudáveis também podem
apresentar exames alterados.
Não é incomum vermos
relatórios com pelo menos 20 resultados de exames! Essa quantidade de exames
eleva a chance de pelo menos 1 exame estar fora da faixa de normalidade a perto
de 50%. Você já parou pra pensar por que, diante dos resultados desta bateria
de exames frequentemente o resultado está fora da faixa de referência, mas
mesmo assim o médico diz que "está tudo bem"?
Mas, se o resultado
do exame não muda a conduta do médico, para que o exame foi pedido?
Papel da Atenção
Primária
Uma das alternativas
mais eficazes para combater o excesso de exames é o fortalecimento da Atenção
Primária à Saúde, privilegiando as abordagens integrais, longitudinais e
centradas na pessoa. O vínculo diminui a realização de exames redundantes e
demasiado frequentes, resultado que pode-se obter com um sistema de saúde capaz
de coordenar o cuidado. A Atenção Primária à Saúde tem ainda papel na
realização das partes comunitárias dos programas de rastreamento, promovendo a
equidade, facilitando o acesso e garantindo o alcance do programa, com isso
otimizando sua eficiência e eficácia.