A Rússia nunca enxergou a autonomia dos antigos países satélites da extinta União Soviética com bons olhos. Moscou sempre monitorou, interviu ou tutelou estas nações, desde os mais rebeldes, como aqueles do Báltico, até os mais próximos, que ainda mantém relações estreitas com o Kremlin.
Curiosamente os russos enfrentam hoje uma crise tripla. Quatro de suas antigas
repúblicas enfrentam graves situações políticas. A primeira delas é a Belarus,
tutelada por Moscou, que mais uma vez enfrentou fraude em seu processo
eleitoral. Lukashenko, o ditador que governa o país desde 1994 busca continuar
no poder sob o olhar complacente de Putin, recebendo orientações do Kremlin.
A oposição foi varrida do mapa. Está no exílio e tenta ainda a derrubada do
governo. A líder da oposição, Svetlana Tikhanovskaya, está na Alemanha. A
imprensa estrangeira foi expulsa do país e as ruas seguem sendo tomadas pela
população que exige um processo transparente e democrático. Os governos
europeus fazem pressão pelo fim da autocracia de Lukashenko, que cada vez mais
se aproxima de Putin.
Do outro lado da Rússia, na Ásia Central, outra antiga república, o
Quirguistão, entrou em convulsão. Ali a situação é também delicada e assim como
em Belarus, existe uma posição geopolítica que Putin precisa preservar. A nação
da Ásia Central é estratégica, pois funciona como barreira ao extremismo
islâmico e ao avanço chinês na fronteira russa.
O problema no Quirguistão, assim como na Belarus, é uma fraude eleitoral. O
Primeiro-ministro, Kubatbek Boronov, renunciou ao cargo. Os protestos seguem.
Há chance real de dissolução do parlamento e renúncia presidencial. O país
sempre foi próximo de Moscou, que inclusive possui uma importante base aérea em
seu território. O essencial para Putin é não perder o controle velado sobre a
ex-República Soviética.
Como se não fosse o bastante, Armênia e Azerbaijão se enfrentam mais uma vez na
região de Nagorno-Karabakh, levando instabilidade ao Cáucaso e ao equilíbrio de
poder que engloba Turquia, Irã e, inclusive, a Síria. Tudo sob o olhar atento
da Rússia. O drama humanitário segue sendo também uma preocupação. Quase 50% da
população foi deslocada e 90% dos afetados são mulheres e menores de idade.
Estamos falando de algo entre 70 mil e 75 mil pessoas. 99% da população é
armênia e deseja independência.
A crise segue com Bashar Assad, Presidente da Síria, acusando a Turquia de
incitar o conflito em favor do Azerbaijão, e o Irã alertando que irá reagir
caso a crise atravesse suas fronteiras. Ao mesmo tempo, a Rússia possui uma
aliança com a Armênia e pode intervir militarmente no jogo se necessário.
Moscou fez ecoar as preocupações de seu aliado sírio,Bashar Assad, sobre a
possível existência de mercenários na região.
Na verdade, a presença de mercenários é uma prática russa, já fartamente
denunciada na imprensa internacional. A empresa paramilitar privada Wagner, que
oficialmente não existe, mas é controlada por um aliado de Putin, Yevgeny
Prigozhin, faz incursões pelas antigas Repúblicas Soviéticas, Oriente Médio e
zonas de interesse de Moscou. Recentemente estiveram em Belarus, onde foram
presos em Minsk, e também foram ativos durante a crise na Ucrânia em 2014 e
posterior anexão da Crimeia. As ações do grupo também foram sentidas na Líbia,
República Centro Africana, Sudão, Madagascar, Moçambique e, naturalmente,
Síria, em defesa de Bashar Assad. O grupo recentemente expandiu as ações para
América Latina, em especial a Venezuela, com o objetivo de manter Nicolás
Maduro no poder.
Os tentáculos da Rússia também atingem antigos países da cortina de ferro, como
a Macedônia do Norte, que depois de possuir um governo aliado de Moscou por
cerca de 10 anos, ainda sofre com a antiga tutela. Moscou não admite que a
nação, estrategicamente situada nos Balcãs, passe a gravitar em torno do
Ocidente. Assim o país acabou sendo vítima de uma pesada companha digital com
objetivo de desequilibrar as eleições e a democracia, mesmo método utilizado
nas eleições americanas, Brexit e outras frentes em diversos países do mundo.
Curiosamente, a Macedônia do Norte tornou-se conhecida por ser um dos maiores
centros difusores de fake news do mundo. Uma preocupante convergência.
Seja por intermédio de fake news ou manipulação de mídias e redes sociais, a
Rússia está intimamente envolvida com a prática de desestabilizar democracias e
direcionar processos eleitorais de acordo com seus interesses. Não é por acaso
que as crises em Belarus e Quirguistão tem a mesma origem de fraude eleitoral.
Na frente militar, o Cáucaso pode estar sofrendo também as incursões de grupos
paramilitares privados para defender os interesses de Moscou. Uma clara
violação das regras internacionais e um desrespeito à soberania de países
autônomos e livres.
Ao enxergar seus interesses em risco em países que são indiretamente
controlados pelo Kremlin, Moscou está agindo sempre mediante de práticas
condenáveis e pouco ortodoxas. A Belarus merece eleições livres como forma de
consolidar uma democracia que ainda deseja nascer. No Quirguistão, os fantoches
russos precisam dar lugar às verdadeiras lideranças políticas locais que
forneçam real autonomia para a região. No Cáucaso, a mediação do conflito deve
ser realizada por nações democráticas, como ocorreu no passado. Se o jogo de
interesses russo, sírio e turco seguir manipulando a região, Armênia e
Azerbaijão podem gerar imensa instabilidade, com chance de um conflito
extrapolar suas fronteiras.
A Rússia precisa aceitar a independência de suas antigas repúblicas, respeitar
suas instituições democráticas e sua autodeterminação. Seu jogo de sabotagem
mercenário-digital-eleitoral tornou-se pesado e desproporcional, tornando-se o
catalisador de instabilidade em diversas nações.
Márcio Coimbra - coordenador
da pós-graduação em Relações Institucionais e Governamentais da Faculdade
Presbiteriana Mackenzie Brasília, Cientista Político, mestre em Ação Política
pela Universidad Rey Juan Carlos (2007). Ex-Diretor da Apex-Brasil.
Diretor-Executivo do Interlegis no Senado Federal.
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