Alguns anos atrás, foi publicado um livro que
apresentava as partes do ser humano em primeira pessoa: “Eu sou o fígado de
João”, “Eu sou o coração de João” e por aí vai. E de forma bem didática a obra
explicava o funcionamento de cada um destes órgãos. Infelizmente, as pessoas
entenderam de forma errônea a verdadeira intenção da obra, afinal, um conjunto
de membros formam um corpo. Porém, os leitores só tinham a visão de membros
separados, não se dando conta que faziam parte do mesmo ser.
Nessa linha de raciocínio, consigo ver com clareza
o distanciamento que fazemos das características que constroem o nosso “eu”. O
ser humano acabou se acostumando com a negação da verdade, tornou a prática um
hábito. No ápice de sua rejeição, se afasta, se acostuma e se convence, que as
mentiras não fazem parte de si, como se fossem alheias ao nosso próprio corpo e
alma. Como o “coração de João”.
E em tempos de COVID-19, não poderia ser diferente.
Na verdade, com este pensamento é possível analisar e pensar sobre o impacto da
mentira na pandemia.
Para que fique mais claro a linha de raciocínio,
levemos em conta que existem dois tipos de Fake News, as dolosas: criadas com
maldade por pessoas com intuito de propagar o caos, e as culposas: espalhadas
por pessoas que querem se prevenir, mas não checam fontes.
As Fake News dolosas são geradas por indivíduos que
sentem a necessidade de propagar o mal e para isso criam discursos e
informações falsas para criar pânico, medo e luto, sensações presentes no mundo
todo nos últimos meses. E uma vez que essas Fake News ganham força e
disseminação suficiente, elas se tornam parecidas com a verdade e então chega o
momento das Fake News culposas que nada mais são do que pessoas multiplicadoras
destas mensagens. Não checam informações, acreditam no que recebem e assim
propagam mentiras sem ter os cuidados necessários com os demais. É um círculo
vicioso de interesses escusos. É o medo coletivo.
Agora, se analisarmos a situação de um ponto de
vista histórico veremos que a humanidade viveu curtos períodos de relativa
tranquilidade. Sou fascinado por história pois ela ajuda a entender e a prever
comportamentos humanos, e estas duas coisas estão simbioticamente ligadas.
Sobrevivemos às guerras - das tribais às mundiais, epidemias e apocalipses.
Vários períodos apocalípticos que assombraram nossos antepassados, ou seja, o
medo e o luto coletivo não são novidades. A peste negra por exemplo (1343
– 1353), matou cerca de 25 milhões de pessoas. Se compararmos a população
mundial do século XIV à de hoje, e atualizarmos os números, provavelmente 1
bilhão de pessoas estariam mortas pela peste negra.
Não estou minimizando o COVID-19, de maneira
alguma. Apenas alertando para o mal que a humanidade sempre conviveu: ciclos de
medo que propagam mentiras e negam as verdades. Quantas pessoas estão
infectando ou sendo infectadas por acreditarem que estão certas? Mesmo com
todas as informações ao alcance delas, a negação da verdade as coloca em risco
de vida e consequentemente sua família ou amigos próximos. Ou seja, neste caso
a mentira e a negação é algo de amplitude catastrófica. Se nos atentarmos,
temos dois grandes exemplos de episódios considerados apocalípticos de medo
disseminado por mentiras: O Bug do Milênio, final de 1999 para 2000, e o Cometa
Halley. Ambas as situações trouxeram uma histeria coletiva que ocasionou
suicídios em massa de pessoas que não estavam prontas para encarar “o fim do
mundo”. No Cometa Halley, houve ainda a Fake News de vantagem financeira.
Pessoas ficaram ricas com a venda de máscaras para proteção contra os gases
venenosos, presentes na cauda do cometa, que “matariam a humanidade” assim que
atingissem a terra.
O mundo sempre viveu sob a ameaça de lutos globais
o que torna a negação da verdade um reflexo humano, então em tempos de Fake
News esse medo coletivo é um adubo em potencial para elas. Sempre existirão
fatos novos que podem se transformar e serem transformados em histeria
coletiva, em um luto coletivo, em uma mentira coletiva. Como por exemplo, dia
29 de abril - meu aniversário, um asteroide gigante com cerca de 4km passará
bem próximo a terra....talvez seja meu último aniversário. Eu sinceramente
espero que não.
Georg Frey - criminólogo, palestrante, Fundador da Unidade de Análise do
Comportamento Humano (U.A.C.H) e autor da obra “Eu Sei Que Você Mente!
Aprenda a Detectar Mentiras” publicado pelo selo de não ficção Littera da
3DEA Editora. Comissário Especial da Polícia, Gestor de
Segurança Pública, Pós-Graduado em Criminologia e Psicologia Criminal, com 30
anos de experiência na análise do comportamento humano. Ao longo de sua
carreira, vem auxiliando, pessoas, famílias e empresas, em consultorias
particulares, treinamentos coletivos, cursos e workshops, no Brasil e
exterior.
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